quarta-feira, 24 de março de 2010

Especial - Filosofia da Perseverança


"Acredite..."

  "Atravesso os portões do Paraíso. Sigo em frente: triunfante, decidido, maravilhado. Eu posso ver além: todas as verdades, todas as respostas, a fonte da sabedoria. Eu posso sentir algo novo e desconhecido: sem incertezas, sem questionamentos, sem aflições. Eu vejo entes queridos: velhos amigos, pessoas saudosas que já não via há anos, e todos eles vêm sorrindo ao meu encontro. Eu também estou sorrindo, totalmente feliz: sem lamentações, sem receios, sem sofrimento. Apenas a paz... Atravesso finalmente os portões do Paraíso, mas há algo que não posso ver, e essa ausência se transforma em um lampejo de angústia em minha alma. Onde ela está? Eu percorri todo este caminho só para te encontrar, mas onde está você, meu anjo?"
(...)

  - Onde...?
  Abrem-se os olhos, relutantes. O despertar de um sonho inquieto, o fracasso e o habitual desespero. Estou deitado em um leito de hospital, confuso e com uma baita dor de cabeça. Suspiro. O que teria acontecido?
  Tento me levantar, mas não consigo. Depois de um tempo, uma enfermeira vem verificar o meu estado; colaboro com os procedimentos, sem reclamar. "O que aconteceu comigo?", pergunto. Ela não responde, me pede calma, o médico já está a caminho. Entediado, peço papel e caneta, se possível. "Para matar o tempo", informo, quando ela me questiona, um tanto desconfiada. Depois de mais alguns minutos, ela me traz o que pedi, e me tranquiliza, revelando que eu tenho muita sorte em estar vivo. "Sorte..." Agora as coisas começam a clarear um pouco. Fico imóvel por um bom tempo, refletindo sobre aquela noite. "Era ela? Teria realmente a visto?" Não importa mais. Acabou. Pelo menos, acabou para mim. Observo o papel em branco; um velho amigo, fiel confidente. Enfim, traduzo meus sentimentos em um poema, contendo muitos dos elementos de minha busca, agora reunidos em minha maturidade:

Filosofia da Perseverança


Ainda que eu soubesse
Que o amor é apenas uma quimera
Criada para tranquilizar os homens
Eu não desistiria.
Ainda que eu soubesse
Que um instante não é mais que um relâmpago
No vazio da Eternidade
Eu não desistiria.
Ainda que eu soubesse
Que sou um mero fantoche
Nas mãos de anjos e demônios
Eu não desistiria.
Ainda que eu soubesse
Que para sempre estarei condenado
Ao simples ato de sonhar
Eu não desistiria.
Ainda que eu soubesse
Que palavras doces são mentiras
Ecos de sentimentos ocultos
Eu não desistiria.
Ainda que eu soubesse
Que a felicidade é como o vidro
Cujo semblante não posso enxergar
Eu não desistiria. 
Ainda que eu soubesse
Que o paraíso não existe
E a realidade é uma amarga ilusão
Eu ainda não desistiria.
Pois jamais esqueceria
Do que me disse um amigo
Quando eu era apenas um menino:
"Se você puder acreditar em si mesmo,
Você poderá mudar o seu destino.
Se você puder acreditar nas pessoas,
Você descobrirá a essência da vida.
E se você puder fazer essas pessoas
Acreditarem nelas mesmas
Você poderá um dia mudar o mundo."
Foram essas palavras de profundo sentido
Mas de tão fácil entendimento
Que me ensinaram a continuar caminhando
Sem nunca deixar de acreditar
Pois ainda que eu ande sozinho
Pelo Vale da Sombra da Morte
Perdido dentro de mim mesmo
Eu ainda não desistiria
E não perderia a fé
Pois enquanto eu acreditar no Amor 
O impossível não existirá.
Você acredita?


  - É frustrante. - murmuro, após terminar de escrever. - Assim como a vida, em si.
  Repouso a cabeça no travesseiro e me entrego, finalmente, ao descanço merecido, mas intranquilo. Meus olhos fitam apenas o teto não familiar, e essa imagem permanece estática até a chegada de algo semelhante ao sono. 
  - Então, só me resta acreditar, não é? - sussurro, em um último delírio antes de adormecer.


**O poema original "Filosofia da Perseverança" foi escrito no ano de 2007, conseguindo o primeiro lugar no Concurso de Poesias do Colégio Almirante Tamandaré. Neste conto, reescrevo e finalizo o poema, de forma a adaptá-lo à sina do Pecador, mas não foram necessárias grandes mudanças, preservando assim a essência do original.**


Image: The_final_act_by_theflickerees - on Deviantart




quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Ensaio 0.4 - Werneck


"Veja o que eu vejo."

"Se a felicidade tivesse forma, qual forma seria?
Acho que deve ser algo como o vidro
Por que você geralmente não a percebe,
mas definitivamente ela está lá.
Porém, cedo ou tarde você vai perceber
Porque se você olhar de um ângulo um pouco diferente,
O vidro reflete a luz.
E o que pode ser visto,
É a prova de uma grande existência, maior que qualquer coisa
."

(...)

    Havia uma pichação na parede da estação Werneck que sempre me chamou a atenção. A primeira vez que a vi foi há muitos anos atrás; naquela época eu mal sabia ler e não compreendi exatamente o que aquelas palavras queriam dizer. Hoje - infelizmente ou não - eu posso compreendê-las muito bem...
   O texto falava sobre o verdadeiro valor da felicidade. Estava escrito em tinta escarlate, bem chamativa e legível, mas as pessoas - ocupadas em seus interesses e afazeres - não reparavam na mensagem. Por algum motivo que desconheço (ou por motivo nenhum, não sei dizer), eu acabei olhando justamente naquela direção, na primeira vez em que estive no metrô. Estávamos indo visitar uns parentes, eu e minha mãe, e ao entrarmos na plataforma de embarque da estação, notei algo escrito na parede lateral, à esquerda do mapa da cidade do Recife. É claro que tentei ler a mensagem, mas não consegui entender o conteúdo do texto. Perguntei à minha mãe o que aquilo poderia significar, mas ela estava muito apressada e apenas murmurou algo do tipo "Não solte a minha mão...!", antes de me arrastar com firmeza para o interior do vagão. Lembro que fiquei por um bom tempo pensando naquela mensagem. Depois daquele dia, muitos anos se passariam até que eu fosse rever aquela parede e finalmente compreender as palavras pichadas em tinta escarlate...

***

   Hoje, revejo aquela mesma parede, mas as palavras foram apagadas. Em seu lugar, apenas a imensidão branca e vazia, onde só se é capaz de enxergar a lembrança de dias mais felizes... ou melhor, dias que hoje parecem ter sido mais felizes, agora que fazem parte do passado. Fecho os olhos, e imagino aquela noite, quando o milagre aconteceu. "Meu anjo...". Hoje, finalmente te encontrarei, pois às custas de muitas lágrimas e sofrimento eu consegui uma pista de onde poderás estar...
   Sigo adiante, me sento em um dos bancos encardidos da estação e espero, inquieto. Minutos depois, o expresso passa inabalável, sem dar a mínima para a minha impaciência. Xingo. Sem escolha, continuo esperando. Já passa das nove... É tarde, não tenho muito tempo. Hoje talvez seja minha última chance...
   Retiro uma pequena garrafa de wisky vagabundo de dentro do bolso esquerdo do paletó. Esta sim é a minha fiel companheira, a amante dos dias sombrios, a melhor ouvinte, guardiã dos temores e receios mais profundos. "Mas que diabos...? Está quase vazia..." Examino o rótulo por alguns instantes e bebo o que resta do líquido amarelado, sem remorso. Depois de mais alguns minutos, finalmente o trem chega. Apesar de vazia, guardo cuidadosamente a garrafa no bolso, e entro no vagão. 
    "Estação Werneck. Destino: Camaragibe" - anuncia uma voz feminina. Suspiro, indiferente, e me sento em frente à janela. "Werneck..." Engraçado, nem sei o que diabos isso significa. Seria alemão? Tem uma pinta de alemão...  Enfim,  não importa. Há coisas mais importantes em jogo hoje...
   Observo a plataforma de embarque pela janela, tentando encontrar alguém interessante entre as poucas pessoas que saíram dos vagões. É um dos meus passatempos inúteis. Próximo às escadas, um grupo de jovens faz uma grande algazarra. Uns idiotas quaisquer se achando... Gente desse tipo sempre aparece no metrô (e em muitos outros lugares, infelizmente). Os ignoro. Do outro lado, vejo uma quarentona e um garotinho seguindo de mãos dadas em direção à saída, provavelmente mãe e filho. Estranho, eles me lembram do dia em que vi a pixação escrita em escarlate pela primeira vez ...
   Os jovens se dispersam. Dois deles, ao invés de descerem as escadas, como os outros, decidem ir na direção contrária, caminhando cheios de si e encarando de forma suspeita a senhora e seu filho. Noto que eles parecem estar alterados e se comportando de modo estranho... 
   - Merda...! - exclamo, antevendo o perigo. Rapidamente, me levanto e cruzo as portas retráteis, que por segundos não se fecham antes que eu pudesse fazer qualquer coisa...
    Eles se aproximam cada vez mais. A senhora, desconfiando das intenções dos dois, fica aflita e apressa o passo, segurando com mais firmeza a mão do garoto de um lado e sua bolsa de couro do outro. Vendo a reação da mulher, um deles, então, contorna a passagem de acesso à rampa, correndo até a saída e lá se prostando de forma a barrar a passagem. Sem saber o que fazer, a mulher pára, assustada. Atrás dela, o outro melinate chega lentamente, sorrindo e sacando uma navalha do bolso lateral do jeans...
    - Passa a bolsa, tia! - anunciou o Candidato a Marginal N° 1, que estava bloqueando a passagem. - Vamo logo, ou nóis fura o pirralho! - acrescentou, revelando por sua vez um canivete suiço de aparência imunda. 
   Muito nervosa e mais pálida do que giz, a mulher tremia muito. Sua reação natural foi a de abraçar o garoto com força, na tentativa de protegê-lo. "Por favor, não o machuque...!", tentou dizer, quase sem voz, e depois disso não conseguiu mais falar, devido ao nervosismo. Mas não largou a bolsa, o que irritou o Candidato a Marginal Nº 1, que se adiantou e começou a xingar, canivete em punho.
   - Bora, porra! Passa a bolsa! Quer que eu te fure, é?
   Nesse momento, eu já estava próximo o bastante do Candidato a Marginal N° 2, que estava mais atrás e de costas para mim, sem ter como reagir... Antes que ele pudesse se dar conta, já estava caído no chão, segurando dolorosamente a "dobra" da perna direita. Aproveitando o golpe de sorte, apliquei um chute com toda a força na cabeça do delinquente, deixando-o sem sentidos. Foi bem mais fácil do que pensei, vai ver porque ele estava muito chapado, ou sei lá. Mais a frente, o Candidato a Marginal N° 1, percebendo o que tinha acontecido, empurra a mulher com brutalidade, que cai no chão. Ele então tenta dar uma de esperto e puxa o pirralho para o seu lado, de modo a fazê-lo um refém, ameaçando-o com o canivete.
   - Seu filho da puta! Olha o que você fez! - xingou ele alto, apontando pra mim, furioso. - Fica longe, se não eu furo esse merdinha! Juro que eu furo ele! - e posicionou a lâmina encardida contra a garganta do garoto, que tremia.
  - "Puta merda, o que eu faço?", pensei, desesperado. "A minha intenção era apenas ajudar, e agora aqui estou eu, piorando tudo. Porra!". Acima dele, o relógio da estação mostrava que eu não tinha mais tanto tempo... O último trem passaria a qualquer momento e eu teria de pegá-lo se ainda tivesse alguma esperança de reencontrá-la... Dessa vez um atraso seria fatal, e provavelmente jamais encontrarei outra pista. Era preciso escolher: abandonar os estranhos agora e ir até ela ou ficar e arriscar perder minha última chance de revê-la...
   "Preciso resolver isso logo. Eu consigo. Vai dar tudo certo..."
   Tirei a carteira do bolso e tentei negociar. 
   - Tome, aqui tem dinheiro, pode levar. Só deixe o garoto em paz, ok? Eu não vou mais reagir...
   - Cala a boca, seu puto! - berrou ele em resposta, visivelmente nervoso. - Joga essa porra pra cá! E a bolsa da dona também! Vamo, vamo logo!
   Fiz o que ele mandou, tentando me manter calmo. Depois de apanhar a carteira e vasculhar a bolsa, ele me olhou de um jeito malicioso e arrastou o garoto até a plataforma de embarque. Tentei seguí-lo, mas ele continuou me mandando ficar longe. No chão, sem conseguir se mexer, a mãe do garoto chorava, desesperada. Foi então que eu perebi o que ele ia fazer. Ele não pretendia deixar o garoto depois de tomar certa distância, ele ia...
   - Não faça isso! - e corri na direção deles para tentar impedir, mas era tarde demais. Ele tinha empurrado o garoto nos trilhos e corrido em direção à saída, logo depois. "Mas que filho da puta..." Continuei correndo, o som do  último trem se fazendo audível não muito longe dali...
   Pulei lá embaixo, sem pensar direito, o coração acelerado. O garoto estava meio tonto, mas conseguiu se levantar. Suspendi o guri e o instrui a tomar impulso e subir na plataforma, se agarrando nas bordas. Ele assentiu e fez como eu falei. Olhei para a esquerda. O trem já estava vindo. Engoli em seco e fiz um grande esforço para tomar impulso e subir a tempo...
   Felizmente, eu consegui, pois o trem reduziu a velocidade antes de parar na estação. Se tivesse sido o expresso... Ofegante, o coração ainda palpitando, observei o garoto tentando ajudar a mãe, mais adiante. Ela chorava e o abraçava... "Ainda bem que deu tudo certo..." 
   Atrás de mim, as portas retráteis se abriram. Sorri e me virei, para entrar no vagão, quando senti uma lâmina fria perfurar minhas costas uma, duas, três vezes. O Candidato a Marginal n° 2 - que nesse meio tempo tinha acordado - devolvera na mesma moeda meu ataque surpresa anterior. Senti um líquido quente escorrer pela lateral do corpo, e cambaleei, sem forças, caindo no chão. Aproveitando o golpe de sorte, o meliante aplicou um chute com toda a força em meu abdômen, fugindo logo depois. Com os olhos quase fechados, meio tonto e gemendo devido a intensidade da dor, olhei ao acaso para o interior do vagão.
   Lá estava ela. Estava sentada, pensativa, um livro apoiado no colo. O que ela estava fazendo aqui, nessa estação? Ela me olhou de volta, surpresa, nossos olhares se cruzaram. Na mesma hora senti o peso de sua essência, o peso de toda a sua alma. É assombroso, e ao mesmo tempo, maravilhoso. Seria mesmo ela? Não seria um delírio, um último desejo materializado pela força da minha vontade? 
   Ela se levantou e veio em minha direção, cruzando as portas um segundo antes de se fecharem. O último trem se fora. Agora ela estava em pé, na minha frente, e também parecia não acreditar no que estava vendo. Por alguma razão, ela não estava onde deveria estar, e eu não fui para onde deveria ir. Era ali, o tempo todo, onde deveríamos nos encontrar... provavelmente pela última vez.

* * *

   Maravilhado, o garoto não podia desviar os olhos daquela visão estonteante. Ela era... um anjo! Sua mãe o chamava, abraçando-o com força. "Rodrigo, Rodrigo, não está me ouvindo? Vamos, temos de ir logo, antes que aqueles marginais voltem!". Relutante, ele olhou para sua mãe, se perguntando como ela poderia estar preocupada com isso quando diante deles havia um ser tão assustadoramente belo? "Não está vendo, mamãe? Olhe, olhe pra ela! É um anjo, ela é um anjo!", e se virou para adimirá-la novamente. Ele poderia olhá-la por anos e anos, pela sua vida toda, e ainda assim não se cansaria de contemplar sua beleza. Faria tudo por ela, qualquer coisa, só para ficar com ela, só para tê-la eternamente ao seu lado...
(...)
   Dona Olga jamais poderia entender o que seu filho estava olhando com tanto afinco, muito menos o que ele quis dizer com aquele estranho comentário. Ela não podia enxergá-la - mesmo estando frente a frente com aquele ser encantador - simplesmente porque não queria enxergar. Aos seus olhos, seu filho apenas olhava o marginal caído e ensanguentado, que pela graças de Deus havia brigado com seus comparsas, dando a ela e ao pequeno a oportunidade de saírem dali o mais depressa possível. "Vamos, garoto, não teime comigo, eles ainda podem estar por perto!", e ignorando os esforços do menino em permanecer no local, o arrastou pelo braço até a saída, passando apressadamente pela parede branca onde outrora havia uma pichação escarlate... Aquela mesma pichação que falava sobre a verdadeira forma da felicidade...


Image: Heaven, by Penetre - on Deviantart



Ensaio 0.3 - Paraíso


Ele abriu os olhos, suspirou e voltou sua atenção para os céus... tentando enxergar além das nuvens. Então, se ouviu um murmúrio, vindo das águas mais profundas que circundam o abismo chamado coração:

"Ainda que eu falasse a língua dos anjos...
eu jamais poderia traduzir em palavras o quanto você é importante para mim.
Ainda que eu cruze os portões do paraíso...
eu jamais poderia conhecer a felicidade longe de ti."

- de um mortal, um pobre pecador.

(...)

_____________________________________________ 
I

  As portas da igreja estão abertas para a noite. Lá fora, a terrível tempestade continua a desabar impiedosamente, como em uma alusão ao meu sofrimento. O ruído característico dos pingos e os estrondos ensurdecedores dos trovões ecoam em meus ouvidos, amplificados pela acústica do salão. Estou além da penumbra, diante do altar, imóvel, indeciso, incapaz. Vez ou outra, os clarões dos relâmpagos revelam os detalhes da arquitetura barroca, bem como a simplicidade das acomodações, a beleza dos afrescos, as imagens suntuosas dos santos... meras impressões artísticas maltratadas pelo tempo, todas sufocadas pelo estranho sentimento de solidão presente no local. Algo está errado... Não me sinto amparado ou tranquilizado, não consigo abrir meu coração para Deus. É horrível. Sou a maior vítima de meu ceticismo niilista... Fico inconscientemente me perguntando: será que minhas preces chegarão até Ele? Eu teria fé suficiente? Não posso me entregar à dúvida ou ao desespero: preciso encontrar uma resposta, preciso descobrir o caminho certo. Mas seria possível para mim?
   - Eu nem sei por onde começar... - murmuro para mim mesmo. Ergo a cabeça, e meus olhos fitam a abóboda do salão, onde dezenas de anjos foram retratados habilmente pela imaginação do artista. É uma bela pintura, mas... Não corresponde à realidade. Lembro da luz dos olhos dela, da sua voz, da sua beleza implacável. Lembro da sua atitude, das suas palavras, da sua personalidade única. Lembro do seu abraço, do seu beijo, do calor humano. Lembro de sua essência indefinível... Quem quer que tenha pintado aqueles afrescos, jamais conseguiria captar a forma primordial, a centelha invisível que eu consegui enxergar quando a vi completamente naquela noite, pela primeira vez. Nem todas as cores, nuances e texturas poderiam descrever o quão magnifica é a verdadeira face de um anjo...
   - Eu a amo... - murmuro para mim mesmo, e a medida que repito estas simples palavras, a idéia escapa de um tímido sussurro para soar claramente, em alto e bom tom, se sobressaindo aos ruídos angustiantes da tormenta, de modo que o mundo inteiro possa ouvir - Eu a amo, eu a amo, eu a amo!!! Essa é a única resposta para as inquietações em meu coração. Agora sei, tenho certeza, não posso negar esse sentimento. Por isso...
  - Deus, por favor, peço-Te, com toda a minha fé, ainda que não seja forte o suficiente, que me ajude a reencontrá-la...!
  Um clarão, muito mais longo do que os outros, iluminou o salão, seguido de um ribombar alto, como se um milhão de trombetas respondessem em confirmação às minhas preces... Seria verdade?
(...)
   - Quem está aí? - perguntou de repente uma voz rouca, vinda da escuridão.
  Assustado, voltei-me para a esquerda, de onde a voz tinha saído. Um pequeno ponto de luz caminhava a passos lentos em minha direção, cada vez maior e mais próximo. Segundos depois, pude ver a silhueta de um padre gorducho, iluminada pela luz bruxuleante de um velho lampião. Apesar do frio, ele suava muito, e pelo jeito que sua mão tremia, parecia estar mais assustado que eu.
   -Q-q-quem é você? O q-que você está fazendo aqui? - gaguejou ele. - Seus vândalos, eu já não disse para nunca mais voltarem aqui? Então não se contentaram em roubar as imagens do altar?!
  - Me desculpe, senhor, mas eu não estava roubando nada...! Pensei que não havia ninguém aqui... - me apressei em responder. - As portas estavam destrancadas e resolvi me abrigar aqui, até que a tempestade passasse... Sinto muito, achei que estivesse sozinho...
  Ele ofegava um pouco, tenso, e me fitou dos pés a cabeça, erguendo a sobrancelha, como se estivesse analisando o meu caráter através da minha aparência (que no momento, infelizmente, não era das melhores). Após enxugar o suor da testa na manga das vestes, o padre gorducho perguntou novamente:
  - O que você estava fazendo aqui, diante do altar? Qual eram as suas intenções hein? Tem certeza de que não está mancomunado com aqueles marginais?- ele fechou a cara, segurando o lampião com firmeza, ainda temeroso. - Seus vândalos, vocês não perdoam nem mesmo o templo de Deus? Esse é um lugar sagrado! Deviam se envergonhar de seus pecados, uns rapazes tão jovens...
  - Não é nada disso, senhor! Seja lá o que geralmente fazem por aqui - o que definitivamente é um desrespeito! -  juro que não sou um desses vândalos. Estou falando a verdade, entrei aqui por causa da chuva, pensei que o lugar estava abandonado, pensei que estivesse sozinho... Só queria me abrigar contra a tempestade!
   Ele mordeu o lábio inferior e se pôs a me olhar longa e profundamente. As rugas em seu rosto aos poucos se suavizaram, e então ele falou:
  - Ah, é mesmo? Pois saiba que as juras tem poder! Em todo o caso... Eu também pensei que estivesse sozinho, mas você está aqui, não é?! E, realmente, não tenho culpa do templo estar nesse estado, mas está longe de ser considerado um local abandonado, não acha? Se bem que essas goteiras não colaboram em nada... - acrescentou ele, apontando para algumas infiltrações no teto principal.
  - Claro... Me desculpe, senhor padre. Espero que não me julgue mal. - e sorri, hesitante. Ele parecia mais calmo, mas ainda estava bem desconfiado. Resolvi sair do local, antes que ele mudasse de idéia a meu respeito.
  - Eu não quero incomodá-lo, por isso já estou indo...
  - Hummm... Nada disso. - interrompeu ele, sério. - Você mesmo disse que estava se abrigando aqui por conta da tempestade, não disse? Ora, então fique! Você pode aproveitar e me ajudar a dar um jeito nessas goteiras, não é? Pelo menos, podíamos reparar as da sacristia, que estão me incomodando muito...
  Surpreso, fiquei em silêncio, sem saber o que responder. Ele então retomou a palavra, perguntando:
  - A não ser... que você tenha mentido e esteja desconfortável com a idéia, seria isso? Jurou em falso, por acaso?
  - Não... não menti! Mas...
  - Então, é melhor ficar. - determinou ele. - Além do mais, você interrompeu a ceia...  bom, tem o bastante para nós dois, se estiver com fome.
  Ele me encarou, decidido. Diante do argumento, não vi problema em ficar... afinal, a tempestade ainda desabava lá fora. E eu estava morrendo de fome...
  - Obrigado, ficarei.
  - Ótimo, emtão me acompanhe, rapaz!

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II

  Estávamos em um cômodo mal iluminado, provavelmente o local onde ele ceiava, antes de me descobrir. Meu estômago estava indignado de tanta fome e anunciou a sua revolta, em um brado alto. Percebendo o meu embaraço, o padre ofereceu um pedaço de pão, uma fatia de queijo e um copo de vinho. Devorei tudo sem pressa, dando grandes goladas no saboroso líquido vindo do fruto da uva. Enquanto eu comia, o padre falava e falava, desabafando suas mágoas:
   - Não temos verba para a reforma da Igreja. Se fosse em outros tempos... as pessoas se importavam mais. Esse lugar é um patrimônio histórico! Isso deve valer alguma coisa, não acha? - e sem me dar tempo para responder, continuou: - Eu acho o seguinte: a prefeitura, o povo, o bispo ou até mesmo o santo Papa: alguém deveria tomar uma atitude ao invés de nos deixar cair aos pedaços! - esbravejou ele. - Bom, talvez eu esteja exagerando um pouco... - acrescentou, pensativo. - Mas, olhe só essas goteiras! Está vendo isso?! Que absurdo! Logo irão inundar a sacristia! - e bateu na mesa com força.
   Concordei, alarmado. Para a minha sorte, ele continuou despejando suas queixas, mesmo depois de terminada a refeição. Eu preferia apenas concordar com ele, quase não falava. Meia hora depois, notei os ruídos da chuva lá fora mais brandos, de modo que pensei em ir embora.
  - Obrigado pela refeição. - comecei, aproveitando uma pausa do padre gorducho. - De qualquer forma, me desculpe. Não queria incomodá-lo. Eu só me aproximei do altar porque... porque eu precisava de uma resposta... Enfim, eu estava apenas tentando... bom, esqueça. Me desculpe. Espero que tenha acreditado em mim. Ah, parece que a chuva finalmente estiou. Até logo, então. - dito isto, me levantei, e fui caminhando até a porta da sacristia, um tanto frustrado.
  - Espere! Para que tanta pressa, meu rapaz? - chamou ele. - Por acaso não achou mesmo que eu iria fazê-lo reparar essas goteiras todas?! Estava apenas lhe testando, meu caro, era apenas uma brincadeira! Fique mais um pouco; não sei o porquê, mas gostei de sua companhia.
  Parei e me virei para encará-lo, surpreso. Ele então começou, em um tom mais sereno. - Não precisa se alarmar, meu jovem. Eu só gostaria de ouví-lo, já que fiquei por toda a ceia falando e falando, sem me dar conta. Ao vê-lo agora, bem... tenho um estranho pressentimento de que talvez você esteja precisando de ajuda.
  Ainda o encarei, atônito. Era tão transparente assim, o meu estado de espírito?
  - Apesar de você ter entrado aqui sem permissão, e de eu não saber quais eram suas reais intenções, eu sinto que é a minha obrigação tentar ajudá-lo. Sinto ter falado tanto, acho que acabei lhe aborrecendo. Gostaria de me acompanhar até o confessionário? Desabafar poderia ser de grande auxílio, rapaz.
  Hesitei. Mas que papo era esse agora? Parecia ser uma pessoa totalmente diferente falando comigo... Toda aquela segurança, parecendo adivinhar o que eu estava sentindo... Seria o que chamavam de inspiração divina? Pensei um pouco, até que finalmente respondi:
  - Tudo bem.
  Então, acompanhei aquele estranho padre gorducho ao confessionário, esperando que ele talvez pudesse me ajudar, temendo apenas que o homem não sofresse de algum distúrbio de polaridade... ou coisa do tipo. Mas eu ainda era um incrédulo sobre as formas pelas quais Deus pode agir...

* * *

  - Apaixonado por um anjo? - perguntou o padre, incrédulo. - E você acha que... a única forma de reencontrá-la é indo até o Paraíso? É isso?
  Estávamos já há algum tempo no confessionário, mas meu depoimento parecia não convencê-lo. Pelo contrário: ele começou a ficar aborrecido, talvez pensando que eu estava zombando de sua ajuda.
  - Sim. Eu acredito que seja a única forma. - respondi. - Procurei por ela em todos os lugares, mas não a encontrei.
  - O que você quer dizer? Está falando metaforicamente, não é, rapaz? É isso?
  - Não. Não é uma metáfora... Ela é um anjo. Eu sei. Infelizmente, ela desapareceu e...
  - Entendo...! - interrompeu ele, surpreso. - Eu pensei que estivesse com problemas, rapaz. Mas, pelo visto, você não sabe em que nível de problemas você se meteu, não é? É melhor estar falando sério, pois eu sou um homem de Deus! Não brinque com anjos ou assuntos desse tipo, onde já se viu isso?
  - Mas, padre, é verdade! Eu realmente a vi...! Ela...
  - Basta! Me fale qual é o seu verdadeiro problema, pare de fugir dessa forma, garoto! Não posso ajudá-lo se continuar inventando histórias mirabolantes como essas!
  Me calei, e dei um longo suspiro.
  - É incrível como nem mesmo o senhor é capaz de acreditar em mim... - recomecei. - Mas eu sei o que vi, o que vivenciei. Ela realmente era... enfim, esqueça.
  Dessa vez foi ele que fez uma pausa. Sem pensar, saí do cubículo, chateado. Logo, ele também saiu, enxugando o suor da testa na manga das vestes, nervoso.
  - Espere, rapaz. Eu... acredito em você. Mas eu precisava ter certeza... - ele ergueu a sobrancelha, desconfiado. - Você me dá a sua palavra? Não me censure, pois eu tenho os meus motivos. - acrescentou ele, ao ver meu olhar.
  - Sim, mas é claro. Não tenho porque mentir.
  - Entendo... - ele suspirou, preocupado. - Então, o que aconteceu? Me explique. - pediu ele.
  - Ela me salvou. - falei, sem esperar que ele realmente acreditasse. - Então, eu a vi, como ela era de verdade, entende? Eu pude enxergar sua essência. Eu não queria, mas não consegui resistir: acabei me entregando totalmente...
  - Então, você quer dizer que se apaixonou de verdade por ela?
  - Sim.
  - E você também falou sobre um milagre... poderia descrevê-lo?
 - É impossível. Mesmo se o senhor estivesse lá, no exato momento, não poderia compreender o que aconteceu... Nem mesmo eu compreendo.
  - E então? O que houve?
 - Eu já disse. Após aquela noite, passamos alguns poucos momentos juntos, até que ela desapareceu, sem nenhuma explicação. Acho que sou o culpado por isso, mas não consigo entender...
   Fiz mais uma pausa e perguntei, frustrado:
   - Me diga, padre: qual é o caminho mais rápido para o Paraíso?
  Ele parecia surpreso com a pergunta.
  - Bom... você deve se arrepender de seus pecados, primeiramente. É por isso que eu digo: esqueça esse delírio, essa história. Não vai te levar a nada. - e continuou, sem me deixar responder. - Escute: os anjos não devem se relacionar desta forma com os mortais, rapaz. Isso não é natural, é uma relação sem futuro, impossível. E, se fosse possível, por algum estranho e desastroso milagre: seria um pecado terrível desviá-la dos desígnios divinos... e a ti, o que dizer de seus próprios propósitos? É isso que você quer?
  - Eu a amo...! O que devo fazer, então?
  - Rapaz... você realmente acredita nesse amor? - perguntou ele, o rosto agora expressando preocupação.
  - Mas é claro! Por que não acreditaria...? - retruquei, aborrecido.
 - Sei... Infelizmente, acho que sei a melhor forma de ajudá-lo. Eu tenho um amigo de infância que é psicólogo, ele tem uma clínica no centro da cidade e...
  - Para um padre, falta-lhe fé. - disse secamente. - Não consegue enxergar a verdade em meus olhos?!
  Antes que ele pudesse responder, saí da sala, indo em direção ao salão principal. Estava quase nas portas de entrada quando ele me alcançou.
  - Rapaz, espere!
  Olhei para trás, furioso.
  - Você não entende, padre. Eu não quero impedí-la de seguir seu caminho, nem pretendo me desviar do meu. Minhas atitudes não são egoístas, muito menos meus sentimentos. Eu simplesmente acredito que a encontrei naquela noite por alguma razão sublime. Preciso descobrir o que aconteceu! Ela me salvou do abismo, e agora, temo que ela esteja se punindo por isso. Tenho de encontrá-la mais uma vez! Talvez eu possa ajudá-la, de alguma forma. Mesmo que tenha que ir até os portões do Paraíso... ou às profundezas do Inferno. Não vou desistir, pois acho que esse seja o verdadeiro propósito por trás da minha existência!
  Ele me olhou, uma mistura de temor e admiração. Parecia não acreditar no que estava ouvindo, mas ao mesmo tempo, um sorriso lhe escapava dos lábios.
  - Você tem muita fé. - declarou ele, inesperadamente. - Mas talvez, nessa ânsia de encontrá-la e, como diz, salvá-la, você acabe se perdendo.
  O encarei, espantado com o argumento.
  - Não se preocupe. Não vou deixar isso acontecer novamente.
  - Não deveria alimentar essa loucura, rapaz. Mas, se quer mesmo saber, algo me diz para acreditar nessa sua fábula romântica. Apesar de estar indo contra os meus princípios...
  Ele sorriu, e se aproximou lentamente.
  - Eu, mais do que ninguém, posso entender o que você sente. Porque eu... eu sou um anjo!
  - O quê?! - exclamei. - Acho que não ouvi direito...
  - Na verdade, eu fui um anjo. Mas isso é uma outra história... Enfim, o que posso dizer é que não acabou bem, para ambos. - ele então começou a falar rapidamente, como se temesse que a coragem de revelar seu passado se esvaisse. - Eu fui um covarde, um fraco, um tolo, e neguei a responsabilidade que me foi incumbida. E acabei me apaixonando... por ela. Eu deixei que ela sucumbisse, mas não posso permitir que você cometa os mesmos erros, meu rapaz. Não posso!
  - Eu não estou entendendo... o que o senhor quer dizer com isso? - perguntei, ainda sem acreditar no que estava ouvindo.
  - Meu rapaz... todos têm o direito de fazer uma escolha. Até mesmo os anjos... e você não é exceção. Se lutar por esse amor, certamente se perderá... Teria você fé suficiente nesse sentimento, a ponto de percorrer os mais árduos caminhos e as mais tortuosas estradas, atravessando até mesmo o Inferno, afim de vê-la uma vez mais? Você terá de sacrificar tudo, e nem assim existem garantias de que irá salvá-la. Pois eu lhe garanto: ela corre um grave perigo; e já não pode ser chamada de anjo, como eu.
  - Não me importam os riscos, pois sei que conseguirei. E jamais desistirei, mesmo que mergulhe nas profundezas do Inferno para reencontrá-la; seguiremos de mãos dadas a caminho do Paraíso! Isso é uma promessa!
  O padre, ou anjo, me olhou admirado.
  - O verdadeiro caminho para o Paraíso - sussurrou ele, a um palmo de distância. - começa dentro de si mesmo. Conhece-te, aprende com teus erros, persista na sua fé; assim, um dia, você entenderá o que realmente importa. Lembre-se: o maior inimigo que encontrarás é a ti mesmo. Deus te abençoe, rapaz. Que Ele possa te amparar e auxiliar na estrada que escolheste!
  Eu sorri, impressionado com a atitude, e o agradeci.
  - Obrigado, padre. Muito obrigado pelas palavras. Então... até logo. Nos reencontraremos um dia, tenho certeza. - Ele riu, contente:
  - Acredito nisso! Você é feito de uma fibra mais resistente do que imaginas. Confia!
  Depois da breve despedida, seguimos pelo mesmo salão em cuja abóbada estavam retratados os anjos em deleite no paraíso. Abri as portas de carvalho, cumprimentei mais uma vez o padre, e segui meu caminho, sem olhar para trás. Lá fora, a garoa persistia, mas não chegava a lembrar a terrível tempestade da véspera.
  - Esse rapaz é louco... - murmurou o padre, quando já me perdia de vista. - Mas, talvez, um louco tenha mais chances de chegar ao Paraíso do que todos os sábios do mundo, não é?
 

_____________________________________________
III

  Caminho pela orla, pensativo. A chuva há muito passara; à minha direita, os raios de sol começam a surgir do horizonte, redefinindo as cores da paisagem. Dou um leve sorriso. Fecho os olhos e sinto a brisa tocar suavemente o meu rosto.

* * *

   Ele abriu os olhos, suspirou e voltou sua atenção para os céus... tentando enxergar além das nuvens. Então, se ouviu um murmúrio, vindo das águas mais profundas que circundam o abismo chamado coração:


"Ainda que eu falasse a língua dos anjos...
eu jamais poderia traduzir em palavras o quanto você é importante para mim.
Ainda que eu cruze os portões do paraíso...
eu jamais poderia conhecer a felicidade longe de ti."

  Era apenas um mortal, um mero pecador. Mas, aos meus olhos, ele era...
 

**Dedicado a todos os pecadores que, por um grande amor, trilharam o caminho do Paraíso... e do Inferno.**

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Image: Heaven's Door by 'bosniak - on Deviantart


terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Ensaio 0.2 - Distância



"Se eu fosse como a chuva..."

  Estou sentado em um grande rochedo, à beira do mar. Não me sinto bem. Ouço as ondas se chocando contra as pedras, num vai-e-vem sem fim. Suspiro. Sinto o cheiro característico da maresia. Isso me lembra a infância, aquelas férias  inesquecíveis na orla... Bons tempos. Sinto o sabor do vento em meu rosto e lembro vagamente do gosto da aventura. Ainda não me sinto bem.. Sinto o frio cortante desta primeira manhã de ano novo. Ignoro-o. Meus olhos fitam apenas o horizonte, inatingível. O sol não nasceu para mim hoje; vejo apenas as nuvens cinzentas de um triste céu nublado. Me sinto cada vez pior.
  Mesmo assim, continuo observando a linha imaginária, seduzido, encantado, imóvel. Sou como uma estátua sem propósito, uma pedra mal esculpida que tristemente volta-se para o além-mar. Vejo uma sombra; ouço um murmúrio abafado. E então, o silêncio. Por quê? Por que continuar olhando e olhando, sem esboçar reação? Por que buscar o inatingível? Por que iludir-me em um sonho inalcançável? Não teria sido melhor voltar minha humilde atenção para esta bela praia ao meu redor? Por que para o horizonte?
  - Não posso culpá-la... - sussurro, mais para mim do que para qualquer um. - Ambos desejamos o impossível, assim como todos os mortais sempre fizeram e o farão até o mundo deixar de ser mundo. As pessoas sempre desejarão o impossível, pensando assim estar em busca da felicidade. Enganam-se. Estarão apenas indo de encontro ao sofrimento, sem notarem a pretensão de seu erro. Elas estão acostumadas a esse fardo. Não, estão completamente presas a ele... tolas demais para perceberem o verdadeiro caminho. A felicidade está mais perto do que poderiam desejar; ela está nos pequenos instantes, em todos os momentos eternos e inesquecíveis.
...
  O vento sopra bem mais forte dessa vez. As ondas acompanham a mudança, chocando-se violentamente contra as pedras. Sinto um formigamento por todo o corpo, principalmente na parte inferior do mesmo. Estou sentado aqui há muito tempo... Minha cabeça dói, certamente devido ao peso dos meus pensamentos. Minhas costas começam a doer também, e por isso decido levantar. Faço isso sem pressa, e com alguma dificuldade. Fico de pé. A superfície da rocha, antes áspera, está agora úmida e escorregadia. Nem me dei conta de que a água tinha avançado até aquele ponto. A Natureza continua a sua dança, mesmo que para muitos ela já não tenha o mesmo significado. Eu sou um deles. Tentado, olho mais uma vez para o maldito horizonte. É hipnotizante. Uma grande dúvida surge em minha mente: o que há além? O que pode haver além do inatingível?
  - O paraíso... - me responde uma voz que julgo vir da minha própria consciência (ou teriam sido palavras balbuciadas pelo meu coração?). Por um instante angustiante, o tempo pára; ondas, vento, cores, nuvens, sombras, tudo. Seria verdade? Será esse o caminho que eu procurava?
   - Sim, o paraíso - ouso repetir - cujas portas estão fechadas para mim. Mesmo que fosse este o caminho, ainda assim não poderia percorrê-lo. Os pecadores estão condenados ao inferno da distância. Jamais cruzarão os portões do céu, ainda que sua vontade seja maior do que a própria felicidade. Do que a própria vida. Eu sou um pecador. Eu sou um condenado. Eu sou um infeliz, torturado pelos meus próprios sentimentos. Como poderia entrar na Terra Prometida aos Santos e aos Eleitos? Como poderia atravessar as fronteiras do inatingível? Tudo isso apenas para vê-la mais uma vez... Quando nem mesmo sei se valeria a pena. Quando nem mesmo tenho a certeza do que sinto... Ou até mesmo do que ela poderia sentir...
...
  Lembro de um sonho distante; da visão em tons de cinza; do medo de ter sonhado; do encontro com as estátuas; da procura incansável; das ponderações sobre o Amor; dos momentos ao lado dela; das lágrimas; do retorno ao onírico; da certeza de ter sido feliz... Lembro de todas essas coisas, e penso em desistir. Assim como tentaram me convecer os ídolos de pedra, no passado: "Desista!". É o que a Razão tenta me dizer, mas o som da palavra soa trêmulo e descrente aos meus ouvidos. Não me convenço. Estou perdido. Teria me restado apenas a loucura? A doce e amarga loucura...
  ...
  O anjo se foi. Eu cheguei tarde demais para encontrá-la; tarde demais para impedí-la. Droga, eu hesitei apenas por um breve momento, mas foi o suficiente para me arrepender amargamente. Eu já tive essa mesma sensação, muito tempo antes de testemunhar o milagre. Este mesmo arrependimento que despedaçaria a minha vontade e corromperia lentamente os meus pensamentos, me ocupando por tantas horas a fio... Meus olhos fitam o horizonte. É tarde demais para desejar o impossível. É tarde demais para mim.
...
  Não percebi, mas os ponteiros do tempo voltaram a correr. Parece que se passaram anos desde que cheguei ao grande rochedo. Mas elas ainda estão lá em cima, as mesmas nuvens cinzentas que agora se reúnem para formar uma grande e assustadora tempestade. "Logo vai começar a chover", penso. Suspiro mais uma vez. "Mas já não está chovendo?". Tento sorrir, como quem conforta a si mesmo. Em vão. Mas a  ironia não para por aí. Lembro que há dois dias atrás, recebi uma mensagem escrita por uma doce poetisa:

"De repente, num instante fugaz,
os fogos de artifício anunciam
que o ano novo está presente
e o ano velho ficou para trás."
"Se chovesse felicidade,
eu lhe desejaria uma tempestade.
Feliz Ano Novo!" 
 
  Sorrio. Parece que foi há muito tempo... Belas palavras. Porém, arrisco dizer que essa tempestade eminente nada tem a ver com os votos de outrora. É uma pena. Era tudo o que eu precisava...
  Sinto os primeiros pingos que caem. A chuva, enfim. É engraçado como velhos poemas podem vir a sua mente em determinados momentos. Lembro de versos antigos que não foram escritos pela poetisa, mas sim declamados por outra pessoa, há anos e anos. Era uma triste garota que lamentava-se, assim como eu, pelo inferno da distância:

"Se eu fosse como a chuva
Que faz um elo entre a Terra e o Céu
Que jamais irão se encontrar
Será que eu poderia atar dois corações?"

  - Se eu fosse como a chuva... - murmurei, hesitante - será que os portões do Paraíso se abririam para mim?

  Uma lágrima solitária cai timidamente. Eu não vou desistir. Daquela vez, mesmo contra todas as adversidades, eu consegui encontrá-la. Eu vou achar um caminho que cruze os céus, um caminho que eu possa percorrer.  Chegarei aos portões da Terra dos Eleitos. E entrarei, sem dúvida. Mesmo que eu tenha  de procurar pelos quatro cantos do mundo em busca das chaves do Édem. Questionarei sábios e loucos; desafiarei santos e céticos. Buscarei o grande segredo com todas as minhas forças, e se for da vontade Dele, eu o desvendarei. Mas se ainda assim, ninguém souber a resposta, eu farei meu próprio caminho.
  - Embora eu não possa voltar atrás e começar de novo, eu posso começar agora e fazer um novo fim. - proclamo as palavras do lema, sem nenhuma dúvida. - Pois o poder de acreditar em si mesmo é o poder de mudar o Destino. É o poder de evocar um milagre...
  E dito isto, dei as costas para o horizonte, e parti.

**Dedicado a todos aqueles que ousaram acreditar - apesar dos obstáculos, medos e incertezas - e continuaram tentando, sem jamais chegar a desistir.**

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Image Credits: The storm by *Floriandra - on Deviantart


Ensaio 0.1 - Bonsai



  "Lembre-se."

  Pai e filha caminham tranquilamente pelas ruas do Bairro do Recife. Era uma bela manhã de novembro, um domingo que tinha tudo para se tornar um dia inesquecível. Os dois estavam alegres e cheios de expectativas. Era a primeira vez que a pequena Mariana visitava a famosa Feira Japonesa do Recife. Ela gostava muito de assistir aos desenhos animados japoneses (os populares animês) e também era uma leitora voraz de mangás, sendo a maioria presentes do pai, que era um aficcioando pela cultura nipônica em geral. Ansiosa, esperava finalmente conhecer de perto uma pequena fatia desse fantástico mundo e, o que é melhor, ao lado do seu pai, que raramente tinha a oportunidade de ver.
  Ela não sabia ao certo os motivos, mas seus pais infelizmente tinham se separado há alguns anos. Mariana e seu irmão mais velho continuaram morando com a mãe na antiga casa, enquanto o Pai se mudara para um pequeno apartamento no subúrbio.  No começo, ainda se viam com frequência, mas era muito chato e difícil ter de se revezar com um e com o outro, sem contar no grande desgaste emocional que ela sofria. Seus pais conversaram e acabaram concordando em espaçar as visitas ao apartamento. Foi duro, mas com o tempo ela acabou aceitando. Mesmo assim, frequentemente pedia a Deus que unisse o casal novamente, para que o Pai voltasse para casa, para que eles voltassem a ser uma família... Mas isso não aconteceu.
  Hoje era uma das raras ocasiões em que saiam juntos. Um dia conveniente para a agenda da Mãe, um dia planejado por tanto tempo pelo Pai... Passeavam de mãos dadas pela feira, reparando em cada detalhe; nas cores, nos sons, nas formas, nas pessoas. E por falar nas pessoas... tinha cada figura vestida de cosplay! Eles riram muito quando passaram uns marmanjões caracterizados de Sailor Moon (loucos ou corajosos?) zoando em meio a multidão. E lá adiante estava o Capitão Brasil batendo um papo descontraído com o Presidente Lula, sobre o futuro do nosso país. Sentados no chão mesmo, sem dar muita importância aos passantes, estavam Nara Shikamaru e o maior detetive do mundo, L, que travavam uma batalha épica no shougi. Logo adiante, jovens lolitas desfilavam pelo palco, impressionando a pequena Mariana, que se surpreendeu com a beleza das garotas e dos seus vestidos cor-de-roza, cheios de laços e babados. Encantada, perguntou ao pai:
  - Pai, elas não se incomodam com esse calorão? Tá me dando agonia só de olhar. Lá no Japão essa moda pode até pegar, mas aqui vai ser meio difícil, né?
  - Pois é. Mas lá no Japão essa moda já pegou. Faz parte da cultura deles, de certa forma...
  - Olha, olha! Vai começar outra apresentação!
  As garotas tinham se retirado do palco, dando lugar a uma alucinante apresentação de artes marciais. Os olhos de Mariana iam de um lado a outro, tentando acompanhar todos os movimentos, mas era quase impossível, devido a agilidade e técnica dos lutadores. Kung fu, aikidô, karatê, kendô... foi impressionante.
  Terminada a demonstração, surge o apresentador, todo animadinho e descontraído, pedindo a atenção do público. A tradicional cerimônia do sakê estava prestes a começar, anunciou ele, sendo rapidamente ovacionado pelos "pés-de-cana" presentes. A cerimônia do sakê consistia na quebra de dois grandes barris de carvalho, cujo conteúdo era o precioso líquido fermentado que servia de combustível para alegrar os ânimos e renovar as forças do pessoal. Percebendo que aquele já não era mais ambiente para garotinhas de dez anos de idade, o pai de Mariana sugeriu que eles fossem comer alguma coisa, afinal, ainda não tinham almoçado.
  - Mas e a cerimônia do sakê, Pai? Eu quero ver como é!
  - Vamos lá, Mari-chan, eu vou te ensinar a comer usando o hashi! Você não queria aprender a comer com os palitinhos?
  - Sério? Eba!!! Vamo, vamo! Eu quero comer lamén!
  O Pai sorriu e lá foram eles até a barraquinha de lamén. Ele não era lá um especialista na técnica milenar de se comer usando os palitinhos, mas mesmo assim, tentou ensinar o pouco que sabia, meio atrapalhado, a custa de muitas gargalhadas dos dois. Mariana pegou o jeito rápido, deixando-o abobado.
  - Esses jovens de hoje! Impressionante! Você é mesmo muito esperta, Mari-chan.
  - Que nada, papai! O senhor é que é meio bobo e não consegue fazer direito... deixa, eu te ensino!
  - Olha só... já tá querendo me ensinar, é? - observou ele, erguendo a sobrancelha.
  - Imagina...! - respondeu ela, piscando o olho. O Pai sorriu. Olhava-a com admiração. Era a sua única filha, um presente de Deus, e nem sempre podiam estar juntos... Ela o olhava de volta, sorrindo, como era linda. Tinha olhos brilhantes e enigmáticos, capazes de conquistar qualquer um. "Ela tem os mesmos olhos da mãe...", pensou ele, com o coração apertado pela saudade. Por que será que as coisas tinham acabado desse jeito?
  - Papai... está chorando? - reparou Mariana, aflita. - O que foi? O que foi, papai?
  - Não é nada... foi só um cisco que entrou no meu olho. - respondeu rapidamente, enxugando as lágrimas. - Vamos. Ah, acabei de ter uma idéia: deixe-me te comprar um presente, algo para você guardar de recordação e assim sempre se lembrar desse dia... Pode ser?
  - Claro! O que é?
  - Pode ser qualquer coisa. Escolha o que quiser. E então?
  - Ebaa!!! Tá certo, então!
  Saíram juntos, parando em cada uma das barraquinhas mais próximas, procurando algo que a agradasse, mas sem obter sucesso. Meia hora depois, já um pouco cansados, foram até a praça, afim de descansar uns minutos à sombra das árvores. Perto da fonte, eles logo repararam em várias tendas que chamavam bastante a atenção, expondo seus inúmeros bonsais. Mariana logo se aproximou, animada.
  - Olha, papai! Olha só, que lindo!
  O Pai também se aproximou, observando atentamente uma miniatura de cerejeira.
  - Realmente é muito bonito, além de ser bastante interessante. Eu sempre quis cultivar um bonsai quando era criança...
  Mariana estava bastante interessada num pequeno exemplar de romãzeira. Olhava-o de todos os ângulos, admirando a beleza dos frutos, o divertido tamanho singular, a composição do arranjo. Ela parecia ter achado o seu presente.
  - Papai, já sei o que eu quero. Eu quero um bonsai! Pode ser, pode, pode, pode?
  - Eu não sei... vai dar trabalho cuidar dele, minha filha. Existe toda uma técnica e...
  - Por favor, Pai! Deixa!
  - Hmm... veja bem, querida, é que eu queria te comprar um presente mais duradouro, pra você guardar de lembrança...
  - Mas Pai, eu achei tão lindo! Deixa, vai! Por favor!
  Ele refletiu por um instante e suspirou, antes de responder:
  - Tudo bem. Mas vai ter que cuidar dele, ouviu? Nada de dar trabalho para a sua Mãe.
  - Viva!!!

***

  O tempo passou rápido, pois ambos se divertiram muito. Enfim, tinha chegado a hora de ir pra casa. Apesar dos protestos de Mariana, o Pai insistiu que voltassem direto para a casa da Mãe, afinal, esse era o combinado.
  - Sua Mãe vai ficar preocupada, e com razão. Vamos, não fique assim... não precisa chorar. - pois os olhos dela já estavam cheios de lágrimas.
  - Não é justo! Ainda é cedo, papai... nós nunca fazemos nada juntos!
  - Ei, isso não é verdade. Olha, eu prometi a sua Mãe que iria levá-la direto para casa. Tente entender... eu gostaria muito de ficar mais tempo com você, mas infelizmente não dá.
  - Mas...!
  - Nada de "mas", garotinha. Já anoiteceu, está tarde e temos que ir. - encerrou ele, oferecendo a mão.
  Ela ainda resmungou algo como "Não é justo!", e segurou na mão dele. Os dois percorreram uma boa distância, até que ela recomeçou o assunto. Ignorando as reclamações da filha, o Pai a levou até a parada de ônibus. Lá, ele se agachou em frente a pequena, depositando o jarro do bonsai à sua direita, e falou bainxinho:
  - Filha, é muito difícil para mim ficar longe de você. Eu te amo, entenda isso, amo muito, muito, muito. - e beijou a face da garota. - Mas, eu combinei com a sua Mãe que te levaria para casa no mais tardar às 9 horas...
  - Mas ainda são 6 e meia!!! - bufou ela.
  - Eu sei, mas você sabe que vamos demorar para chegar lá. Vocês moram muito longe do centro da cidade. E você sabe que sua Mãe ficaria preocupada se nós demorassemos muito... sem falar que hoje é domingo, o ônibus demora muito a passar.
  - Eu sei...
  - Não fique chateada, filha. Outros dias como esse virão. Eu prometo que da próxima vez, ficaremos o final de semana inteiro juntos, que tal?
  - Tudo bem, Pai. Desculpe... mas é que eu sinto falta do senhor. É tão estranho não te ver mais em casa... não consigo me acostumar com isso. Sabe, às vezes eu choro muito, sinto saudades suas. Quando mamãe me vê assim, ela fica muito triste também. Às vezes, eu a vejo chorando escondido. Eu sei que ela ainda gosta de você, Pai! Eu só queria que vocês ficassem juntos de novo. Seria tão legal! Assim todos nós poderíamos ser felizes de novo!
  Aquele desabafo inocente foi como uma pontada no coração do Pai. Fazia tanto tempo, mas a filha ainda não tinha superado... é, talvez ela nunca superasse. Era realmente difícil. Nem mesmo a ex-mulher... e nem mesmo ele, tinham conseguido. A culpa era toda dele, de como ele tinha sido idiota e grosseiro. Se pudesse voltar no tempo...!
  - Mariana, preste bastante atenção: eu e a sua Mãe te amamos muito. Não deu certo entre nós dois, mas não queremos que você se sinta prejudicada. Se decidimos fazer dessa maneira, foi pelo seu bem! Sinto muito por tudo o que você está passando, mas apesar de separados, nós estamos do seu lado.
  - Eu só queria estar ao seu lado, Pai. Eu te amo. - disse ela, chorando. Emocionado, ele a abraçou forte, e murmurou:
  - Eu também te amo, filha.
  Alguns segundos se passaram. Mais calmo, o Pai chamou a atenção de Mariana e apontou para o céu.
  - Veja: consegue ver a estrela mais brilhante no céu?
  Mariana, os olhos ainda vermelhos e cheios d'água, demorou um pouco antes de responder:
  - Sim, é aquela ali. - e apontou.
  - Exatamente. O nome dela é Sofia. Todas as vezes que você sentir a minha falta, é só olhar para aquela estrela, a mais brilhante do céu. Eu também vou estar olhando para ela, e assim você saberá que não está sozinha. Eu jamais vou te abandonar! Eu sempre vou estar ao seu lado, não importa onde eu esteja. Porque eu sempre vou te levar aqui, no meu coração... - concluiu, a mão contra o lado esquerdo do peito.
  Ela olhou para ele, com toda a sua admiração, e sorriu. Seus olhos brilhavam como dois diamantes, iguaizinhos aos olhos da Mãe...
  - Obrigada, Pai.
   Ele a abraçou novamente, ainda mais apertado, enxugou os olhos da pequena, pegou o jarro ao seu lado e se levantou, rindo.
  - Muito bem, vamos lá: você conhece a piada do pinto que se chamava Relam?
  - Ah, Pai! O senhor já contou essa!
  - É mesmo? Hahaha! Só estava testando a sua memória!
  - Sei... eu creio.
  - É sério!
  - Papai, o senhor às vezes é tão bobo!
 
   Esperaram mais vinte minutos antes da chegada do ônibus, que pegaram sem maiores problemas. Mariana apoiou sua cabeça confortavelmente no ombro do Pai, e este passou o braço por suas costas, amparando-a. Seria uma longa viagem até a casa da Mãe, mas ao mesmo tempo, seria um momento único para os dois, um pequeno momento de felicidade onde estariam juntos.

***
 
**Dedicado a nossa pequenina estrela chamada Sofia. Sua curta passagem pela Terra não foi em vão! Nunca te esquecerei... nós sempre vamos te amar!**
 


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Image: Plastic Bonsai - by ~ldinami7e - on Deviantart


domingo, 3 de janeiro de 2010

Especial - Ode ao Recomeço



"O FIM ESTÁ PRÓSSIMO"
(mas nunca é tarde para nascer de novo...!)

    É dezembro. Mês de festividades, expectativas, alegria, boas ações, tensão capitalista... Eu até gosto de toda essa atmosfera natalina, cheia de gastos absurdos, excessos, ofertas imperdíveis, cores vibrantes, neve artificial, mensagens fraternais... além dos clássicos filmes B sobre o bom velhinho. Tudo, é claro, temperado ao som de horríveis ( e pegajosos) jingles natalinos. O que posso dizer? Eu "adoro" o Natal. Todas essas coisas superficiais que nem de longe evidenciam o verdadeiro sentido da comemoração, seja do ponto de vista cristão ou não... Ah, e quanto ao meu ponto de vista preferido - a origem pagã do Natal!? As pessoas nem imaginam de onde surgem os velhos hábitos...
    Eu sei que não estou sendo muito sincero quando digo que adoro esta época (estou sendo sarcástico, na verdade), mas só queria evidenciar que nada do que citei se compara ao que existe de pior nesses tempos tão "agradáveis". Se tem algo que eu odeio mas do que tudo nessa época (ei, agora eu estou sendo sincero!) é a terrível "sina" das compras. Ter de sobreviver em meio às multidões, sem fôlego, em busca de um singelo presente que vá agradar aos seus familiares, ao seu amigo secreto, ou, quem sabe, a sua namorada (sem dúvida, dentre os citados esta seria a tarefa mais difícil), é muito cansativo e frustrante.
    Estou andando pelo centro da cidade, fumando um cigarro, tentando aparentar um ar despreocupado; é o meu primeiro dia de folga depois de tanto tempo enfurnado lá na redação... diabos, aqui estou eu, rumo às compras. Mas ao menos isso posso me dar ao luxo de fazer sem pressa... afinal de contas, estou sozinho.  É inédito, pela primeira vez em muitos natais, estou indo às compras sozinho. Dou um largo sorriso. Um dia inteiro sem ninguém para me encher o saco, ninguém dando palpites idiotas sobre isto ou aquilo, ninguém namorando estampas chamativas ou lembrancinhas esnobes... Ninguém, apenas eu e centenas de consumidores em fúria. O sorriso já não me parece tão largo assim...
    Apesar de ser imensuravelmente entediante e cansativo fazer compras (principalmente este mês), não posso comparar isto ao corre-corre lá no jornal...  comprar é de longe, melhor. Eu acho. O cotidiano me consome a sanidade e alimenta cada vez mais a minha úlcera. Stress, pressão psicológica, cobrança... mas hoje não, ao menos espero. Calma! Estamos no início do mês, o desespero e a matança geralmente ficam para a última hora. É... esse pensamento me conforta. Conto com isso. Sem falar que ainda posso curtir um pouco o meu tempo sozinho, mesmo que seja enfrentando filas e mais filas para passar o cartão de crédito... 
    Sigo. Atravesso uma rua e paquero uma loira oxigenada que passa. Que gostosa... Um tipão, desses que devem enlouquecer um cara na cama, mas que não deve ter nada na cabeça além do vazio da superficialidade. Que pena. Dou uma tragada. Sem pressa, paro em frente a uma dessas bancas de revistas que mais parecem um fiteiro. Olho algumas revistas na prateleira mais próxima e percebo que mais da metade delas fala sobre uma tal profecia maia do fim do mundo em 2012... que baboseira. As pessoas acreditam em cada uma... Ignoro. Acima, admiro uma ou outra modelo rabuda (digo, sexy) dessas revistas digitais que vendem para os adolescentes espinhentos hoje em dia. Vejo as curvas moldadas no Photoshop, uma falsa delícia... Dou mais uma tragada, enquanto imagino o quanto me divertiria com ela, se tivesse alguma chance...
    Vou passando os olhos por uma ou outra notícia nos jornais à mostra. Que tédio... Porra, finalmente reparo numa declaração estampada na primeira página do principal concorrente (e puta-que-o-pariu, também é manchete da maioria dos tablóides mais escrotos do estado!):

"Bons jornalistas são os idiotas que escolheram uma outra profissão."

    - Mas que merda...?! - exclamei, deixando cair o cigarro da boca, surpreso, após ler esses dizeres em negrito. A frase estava logo abaixo da foto de um velho e decrépito senador (como tantos outros), envolvido no mais recente escândalo político (como tantos e tantos outros) figurando nas páginas da imprensa. Esta declaração polêmica teria fervido muito mais o meu sangue se eu ainda estivesse na faculdade (e eu com certeza teria cuspido na cara do filho da puta, para depois tomar partido em  mais uma manifestação com meus colegas universitários). Mas o que mais me irritou foi... o que mais me deixou puto foi o fato de, lá no fundo, considerar aquela merda... Não digo concordar, mas... Mas agora que estou do "outro lado", formado e batizado no ofício, marcado a ferro e fogo como gado, um legítimo "formador de opinião"... Eu posso até me esforçar em assimilar um outro significado por trás destas palavras... Em resumo, a decepção da realidade frustrou meus antigos ideais. É uma merda. Mas não vou deixar que minha frustração atrapalhe o meu aborrecimento ao ler esta frase... Esse velho corrupto não vai deixar de perder seus últimos pontos por causa disso... Afinal de contas, o filho da puta quis apenas alfinetar a imprensa e eu também faço parte dela.

  "O Senador soltou esta polêmica frase que alterou os ânimos dos jornalistas presentes, após ser pressionado por quase meia hora pela imprensa, que não abria passagem enquanto o mesmo, apressado, tentava chegar ao saguão do aeroporto (...) respondendo sem pensar ao comentário de um repórter da Folha do Estado, o Senador o alfinetou toscamente, ofendendo todos os profissionais da área (...)"

    Todos nós vinhamos acompanhando o mais novo caso de corrupção no Senado durante as últimas semanas; rendeu muito "pano pra manga", o que significa muito trabalho, mas também muitos jornais vendidos. Para mim, era o suficiente. "Hoje é meu dia de folga", pensei, "e, pelo menos por enquanto, vou deixar essa pra lá."
    Retomo a caminhada, pensativo. Em pleno Natal... cagadas desse tipo e até mesmo coisas muito piores não deixam de acontecer... Na verdade, acontecem o ano todo, todos os anos. Isso me desanima um pouco. Logo eu, taxado de insensível por minhas ex-namoradas... e também pela atual. Não me leve a mal, mas... eu não sou um cara insensível, sou apenas um cara frustrado. É, é isso. Depois de tantos escandâlos, tantos podres, tantas decepções... por debaixo dos panos, não pense que o mundo é cor-de-roza. E eu não estou falando apenas de política, mas de tudo, de um modo geral. Esses velhos conceitos, como política, religião, justiça, igualdade, liberdade e amor (e outros). Não alimento maiores esperanças. Pode me chamar de pessimista. Eu me consideraria realista.
    A sociedade atual se perdeu. Vivemos em uma realidade puramente comercial, onde o que importa é como as coisas aparentam ser e não como elas são de verdade. É uma pena, mas é por aí. Até mesmo as instituições religiosas, que deveriam ser um alento de esperança, nos decepcionam envolvendo-se em escândalos e falcatruas. Já cansei de ler (e redigir) pautas sobre padres pedófilos, pastores estelionatários, terroristas islâmicos, agitadores católicos... e inúmeros outros idiotas que fingem acreditar em ideais totalmente diferentes do que realizam na prática. Tolice. São apenas uns hipócritas. Me lembro da letra de Imagine, aquela notória canção do John Lennon, e começo a entoá-la mentalmente, idealizando um mundo perfeito. Se eu fosse traduzí-la, ficaria  mais ou menos assim (aviso que não sou tão bom em inglês):

"Imagine que não há paraíso
É fácil, se você tentar
Nenhum inferno abaixo de nós
Acima de nós, somente o céu
Imagine todas as pessoas
Vivendo para o hoje
...
Imagine que não há um país
 Não é difícil de se fazer
 Nada pelo que morrer ou pelo que matar
 E nenhuma religião também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz (...)"

    Acho difícil imaginar, e mais difícil ainda se tornar realidade. Mas, sei lá, a esperança é a última que morre.
    Sigo. Enquanto caminho (pensando em todas essas coisas), chego a um beco fedorento, próximo a uma encruzilhada qualquer. Sentado no chão, escorado na parede encardida do beco, vejo um mendigo (muitas pessoas passam a vida toda sem reparar neles) segurando  um tosco pedaço de papelão onde estava escrito "O FIM ESTÁ PRÓSSIMO". Sorri naturalmente ao reparar no erro gramatical, e por este motivo decidi me aproximar do homem.
    - Olá, companheiro. Como vai? Desculpe, eu não pude deixar de notar, mas sabia que os dizeres na "placa" estão errados? - comecei, tentando ser bem cordial.
    - Como assim? - respondeu ele, dando um sorriso inesperado. Era bem mais simpático do que imaginei... e bem mais velho. Eu não mencionei, mas ele era velho. Infelizmente, não deixei de notar sua aparência lastimável: tinha uma longa barba cinzenta (que em outras condições poderia ter sido branca), muito cheia; seu cabelo era despenteado, crespo, rente ao crânio e também muito sujo; a pele era magra e pálida, um pouco manchada e encharcada de suor (o calor estava realmente desgastante naqueles dias); vestia trapos rasgados e estava descalço. Mas o que ficou registrado na minha memória (pois depois desse encontro me lembraria para sempre daquele estranho), o que mais me impressionou foi o seu jeito de olhar, como se estivesse olhando diretamente para a minha alma. Era alguma coisa no brilho daqueles olhos profundos, algo que revelava uma grande experiência. Sei lá... Ele era apenas um mendigo, mas aqueles olhos revelavam algo sobre a sua essência (na falta de um termo melhor) que eu não conseguia entender. E no momento eu não poderia compreender, mesmo se quisesse.
    - A placa diz exatamente o que tem de dizer. Não há nada errado com os dizeres dela, meu filho.
    - Não foi isso que eu quis dizer, meu velho. Acontece que... bem, não me leve a mal, mas o senhor escreveu "próximo" com "SS". É esse o erro. Me desculpe, mas eu não pude deixar de notar... queria apenas avisá-lo, entende?
    - Ah! Isso! É, realmente... mas não se preocupe, eu sabia que tava errado, escrevi assim para chamar atenção. E veja, deu certo! Certíssimo! - e deu uma gargalhada de alegria. Ele realmente se empolgara: parecia um doido varrido rindo daquele jeito...
    - Está certo! Certo, certíssimo! Não acha genial? Hahahaha!
    - ...
    "Esse velho... aposto que é um desses loucos que ficam rindo à toa por aí, depois de encher a cara. Deve ser um vagabundo, logo se vê que nem tenta arrumar um emprego decente... Pobre diabo. E veja como ele está contente, olha só em que situação fui me meter... ele deve estar bêbado, o safado."
    - Errr... até.
    Resolvi ir embora enquanto podia. De repente, o velho parou de gargalhar e perguntou em voz alta, antes que eu tivesse me distanciado:
    - Espere! Onde vai? Não poderia me ajudar? Um pequeno favor... Afinal de contas, é Natal, meu filho! - e me estendeu a mão direita, fazendo um sinal indicativo com os olhos, que eu não entendi muito bem.
    Voltei e sorri amarelo. "Ah, claro... ele quer uma esmolinha. Provavelmente para encher a cara. Mas eu não tenho nenhum trocado, que droga, quem sabe se eu desse algum, ele me deixasse ir...", pensei, aborrecido.
    - Me desculpe, senhor, mas não tenho trocado. Quem sabe na próxima? - e me virei para seguir em frente.
    - Não, não é isso! Eu estava apenas pedindo um pequeno favor, uma ajudinha sua.
    - Hã?
    - Poderia pegar este velho violão, esse aí, do seu lado direito, e trazer pra mim? Minhas costas estão me matando e minhas pernas também; só pra poupar que eu me levante, só isso! Dor na junta não é mole não, meu filho!
    Olhei para o lado. Tinha mesmo um violão escorado na parede, velho e sujo, a madeira já desgastada, com algumas cordas (umas duas) enferrujadas... eu duvidei na hora que alguém pudesse tocar qualquer coisa usando um violão naquele estado. O instrumento não estava fora do alcance das mãos do velho; se ele se esticasse um pouco, poderia pegá-lo. Ainda assim, peguei o velho "Kaxyma" (uma marca pirata, pelo visto) e levei até o "velho doido".
    - Aqui está. Você toca? - perguntei, descrente. De repente me lembrei que queria ir embora e seria um erro puxar assunto. Tarde demais.
    - Mas é claro, meu rapaz! Claro que sim... Quer ouvir uma canção? Eu a chamo de "Ode ao Recomeço"... bonito nome, não é? Eu mesmo inventei!!! Hahaha! - e, deixando o papelão de lado, posicionou o violão, preparando-se para tocar. Dei mais um sorrisinho amarelo e olhei para o relógio, deixando escapar um suspiro de impaciência... Hesitei um pouco, mas acabei concordando.
    - Tudo bem...
    - Então lá vai! Woohoo! - começou ele, loucamente, sem me dar tempo para mudar de idéia:

"Abram os olhos, homens mortais
Ouçam atentos, esta canção
Sigam o som da minha voz
Prestem atenção nos meus sinais:

Selva de pedra inundada
Afogada em sentimentos vãos
Ideologia infundada
Sonhando com os pés no chão.

Caia sociedade morta agonizante!
É dia de Natal!
Fora insanidade humana intolerante!
É dia de Natal!
 Fale ao moribundo louco alucinante!
É dia de Natal!
Salve o mundo livre-arbítrio fulminante!
É dia de Natal!
É dia de nasceeer... de novo!!!

Abram a mente, homens mortais
Escutem enfim, com o coração
Matem os seus medos e suas vontades
Aceitem a promessa da Salvação:

Nossa esperança é podada
Sem chances de que irá crescer
Nossa fé é testada
Será que ela irá vencer?

Clame ao novo mundo pobre ignorante! 
É dia de Natal!
Viva à falsa liberdade estonteante!
É dia de Natal!
Chorem idiotas nesta terra suplicante!
É dia de Natal!
Acredite na mudança escória irritante!
É dia de Natal!
É dia de nasceeer... de novo!!!

    Poucos aplausos; o cara me pegou de surpresa. Até que ele não era ruim... era impressionante o modo como poderia tirar alguma melodia daquele violão detonado. A letra era bastante interessante também... e o jeito de cantar, parecia que estava declamando e não cantando os versos. Para um pobre coitado, um mendigo, com um violão de quinta, fora uma demonstração além do esperado. Senti um certo constrangimento por tê-lo subestimado; era um verdadeiro artista, um talento não lapidado, é verdade, mas ainda assim, havia uma beleza rústica naquela apresentação. Uma pequena centelha de talento...
    - Então, meu rapaz, o que achou? - perguntou ele, sorrindo, após escorar o violão novamente na parede.
    - Eu gostei. - abri a carteira, retirei uma cédula de R$ 10,00, algo que nunca fiz por nenhum mendigo na vida, e a ofereci ao velho. Ele sorriu mais uma vez e pegou a cédula, agradecendo muito.
  - Não precisava, meu filho. Não precisava... se eu não necessitasse, não aceitaria. Cantei com o coração, não por dinheiro. - e eu vi em seus olhos que falava a verdade.
    - Disponha, senhor. O senhor merece... tome, aqui está o meu cartão. O senhor poderia se tornar um grande artista, não está interessado? Eu tenho alguns contatos nesse meio...
    - Não, meu jovem, obrigado. Estou velho pra isso; mesmo assim, agradecido.
    Então, como ele não dera sinais de querer o cartão, o guardei na carteira. Eu sabia: era um vagabundo.
    - O senhor é quem sabe... mas seria um sucesso, tenho certeza. Poderia sair das ruas...
    - É gentileza sua... mas tenho uma missão importante, meu rapaz. Uma missão muito importante!
    "Que cara doido. O que será que ele vai aprontar dessa vez?"
    - Jovem, todo mundo nasce com um propósito. Você entendeu a mensagem da minha música?
    - Perdão?
    - A mensagem, filho, a mensagem da música! - e agitou as mãos, como um maestro, no ar.
    "Como assim? É claro que entendera a letra... o que o velho queria dizer?"
    - Eu prestei atenção na letra. É bem interessante.
    - Mas você a entendeu? Entendeu mesmo? Porque nunca é tarde, meu rapaz, nunca é tarde! - e dizendo isso, voltou a pegar o pedaço de papelão, exibindo mais uma vez os dizeres "O FIM ESTÁ PRÓSSIMO".
    "Eu sabia... o cara é louco. Mas é um cara interessante, afinal de contas... Se fosse rico, chamariam-no de excêntrico."
    - Sei... bom, até um dia, quem sabe? Foi bom conhecê-lo, err, senhor...?
    - Hum?
    - Seu nome... qual é o seu nome, senhor?
    - Ah! Me chamo Joshua! Pode me chamar assim... era o nome do meu pai. Ele era um grande homem... Foi rei em uma terra distante e esquecida. Mas eu... Sou apenas um velho músico que nada tem de artista... - e sorriu.
    Rei? Sei... duvido. E outra: que nome estranho... será que ele é descendente de judeus? Bom... eu que não vou perguntar. Tenho que ir, já perdi muito tempo. E ainda vou enfrentar muitas e muitas filas até o final do dia... que canseira.
    - Prazer. Me chamo Ricardo, Ricardo Martins. Sou apenas mais um jornalista. Então até um dia, Joshua, nos vemos por aí. Foi um prazer, mas eu tenho que ir.
    Antes que ele pudesse puxar assunto novamente (o que seria muito chato), apressei o passo e segui adiante. Já ia atravessar a avenida, quando de repente, escutei o chamado aflito do velho. Aborrecido, parei e olhei para trás.
    - O que foi? - perguntei, num tom irritado.
    Ele sorriu, triunfante, antes de dizer:
    - Não está se esquecendo de nada, meu filho? Algo muito importante?
    - Hã?
    Foi tudo muito rápido: uma freada brusca, um ruído de motor velho roncando, um estrondo e mais nada. Me virei e olhei para a avenida. Estava um caos. Aparentemente, um Chevette tinha avançado o sinal vermelho, por pouco não atropelando alguém, mas acabou se chocando violentamente contra um poste mais adiante, do outro lado da rua. Se eu tivesse atravessado essa mesma avenida, segundos antes, teria sido atingido? Não sei dizer... Talvez sim, é provável. Me voltei para o velho, o coração batendo forte, ainda assustado com o  recente acontecimento, para agradecer ao pobre diabo por ter salvo a minha vida. Mas ele não estava mais lá; não havia sinal dele em lugar nenhum, nem mesmo do violão Kashyma outrora encostado naquela mesma parede. Nada, apenas um pedaço de papelão onde estava escrito: "O FIM ESTÁ PRÓSSIMO". Me aproximei, ainda mais assustado. Puta merda, onde está o cara? Para onde ele foi? Mas o que foi isso...?
   Caramba... Ainda não consegui assimilar o que aconteceu. Pego o pedaço de papelão, ainda procurando o velho pelo local. Ele teria corrido no susto? Deve ter sido. Distraidamente, viro a "placa", assim, ao acaso, e atrás dela, encontro os dizeres: "EI, NUNCA É TARDE PARA NASCER DE NOVO...", escritos em tinta vermelha.
    - Nascer de novo...? - murmurei, antes de olhar para trás, na direção do acidente, cuja cena já era cercada por uma multidão de curiosos... Teria sido apenas uma grande coincidência?

**Previsto para ser postado originalmente no dia 25/12/2009, mas devido a uma falha de acesso à minha conta no Blogger, o "Especial 1.0" acabou ficando para este mês. Peço desculpas e espero a compreensão de todos. Até! **