segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Especial - Como um livro simples e empoeirado guardado em algum lugar da sua estante...


"Leia-me, caro amigo"

"Como um livro de capa simples, sem atrativos estéticos ou ilustrações auto-explicativas, esquecido em algum lugar da sua estante. Um dia, você por acaso decide folheá-lo, não com grande interesse, afinal, é só um livro sem graça que sempre esteve ali e você nunca se deu o trabalho de ler. Mas, no momento em que lê o primeiro parágrafo, você começa a ficar curioso sobre qual seria a história daquele livro estranho e decide fazer uma tentativa. Aos poucos, quase sem perceber, você acaba imerso na leitura, sem conseguir desgrudar dela, linha após linha, página após página, até chegar ao seu final surpreendente e imprevisível. E aí, só aí você se dará conta de quanto tempo perdeu sem dar valor aquele livro simples e empoeirado guardado em algum lugar da sua estante... aquele livro que continha nada mais, nada menos que a história mais emocionante que você poderia ter lido em toda a sua vida. E não importa quantas vezes você volte a folheá-lo, você jamais saberá o que esperar dele, pois ainda existem muitas páginas em branco; os capítulos estarão sempre mudando e a história estará sempre seguindo, até surgirem novos personagens e novos desfechos, porque a história desse livro é o romance de uma vida. Por isso, não julgue um livro pela capa; se tiver de julgá-lo, julgue-o pelo valor de sua história, pelo quanto ele lhe emocionou e lhe divertiu, e também pelo quanto ele possa ter contribuído para que você tenha escrito as suas próprias páginas. Mas acredite, caro leitor e escritor em potencial, ainda existem muitas páginas a serem escritas... e não existe nada como o tempo."



Image: Book Story1 by Azram on Deviantart



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quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ensaio 1.1 - Poker entre amigos | Parte 1


"A sorte está lançada!"

I

   Era uma noite escura e silenciosa. Sentados à mesa - disposta irresponsavelmente nos limites de um precipício - um grupo de amigos estava reunido para uma épica partida de poker. Eram amigos de infância muito queridos, do tipo que raramente se vê hoje em dia, mas já fazia um bom tempo desde seu último encontro. Eram quatro personalidades fortes e distintas, cada qual com seus trejeitos e manias, e se chamavam Desejo, Paixão, Amor e Razão.
   Geralmente, dentre todas as coisas que costumavam aprontar juntos, as partidas de poker eram das mais hilárias, pois sempre acabavam em provocações e muita confusão. O Amor sempre insistia em tentar acalmar os ânimos e acabava sendo vítima de piadas de mau gosto; a Razão não poupava os comentários ácidos nas horas mais cruciais; a Paixão sempre conseguia fazer um assunto qualquer terminar em uma pomposa referência a si mesma; e o Desejo, que era todo gracejos e indiretas, nunca deixava os petiscos dando sopa por muito tempo. Mas, apesar de um ou outro desentendimento, sabe como são os amigos; no final das contas, sempre davam o braço a torcer e tudo acabava em uma grande algazarra.
   Esta noite, porém, estavam anormalmente tensos. Hoje havia algo muito mais importante em jogo, pois não se tratava de uma simples reunião para matar as saudades. A partida daquela noite era decisiva e visava nada mais nada menos que um raro fragmento de coração, de valor inestimável.
   Depois dos cumprimentos, abraços e tapinhas nas costas, já acomodados em seus respectivos lugares, avistaram ao longe um andarilho, coberto da cabeça aos pés por um sobretudo negro. Era um estranho aos olhos dos quatro, e parecia estar muito cansado do longo caminho que percorrera. Ao se aproximar o suficiente, ele saudou o grupo com um simpático aceno de mão e um sorriso, que demorou alguns segundos para ser correspondido.
   - Boa noite, cavalheiros! - disse ele, amigavelmente. - Vejo que os senhores estão prestes a começar um joguinho! Hahaha! Será que eu poderia me juntar a vocês? Estou bastante cansado... um pouco de descanso e um tanto de diversão entre amigos podem renovar um homem! O que me dizem?
   Surpresos, os quatro simplesmente não sabiam o que responder. Quem era esse estranho falante e por que ele havia surgido do nada a essa hora da noite, justamente no local onde haviam marcado a partida? Não sabiam dizer. Era uma baita de uma coincidência, impossível ser mera obra do acaso. Alguém deve tê-lo convidado... Mas quem? Isso despertou uma pequena desconfiança, afinal, foi combinado que estariam sozinhos aquela noite. Planejaram uma disputa fechada, ou seja, sem estranhos. Teria sido o Amor a convidá-lo, não podendo negar um pedido sincero sob certa insistência? Ou teria sido a Razão, maquinando algum truque para garantir a vitória? O Desejo não poderia ter pensado em algo tão elaborado, pois era pura impulsividade... mas, será que, justamente por isso, teria dado com a língua nos dentes? E quanto a Paixão, teria sido ela a responsável? Não, seu ego era grande demais para aceitar a ajuda de qualquer um... Ou será que não?
   Temendo até onde essa dúvida poderia chegar, os quatro concordaram em silêncio em pensar com cuidado sobre a entrada do estranho no jogo, permitindo uma maior aproximação do mesmo. Mas é claro, todos mantendo os olhos bem abertos para eventuais truques... Antes de mais nada, é preciso salientar aqui que devido ao altíssimo valor do prêmio em questão, o grupo estava alheio ao sentimento mútuo de amizade e desejava apenas ganhar a disputa, custe o que custar. Mas não devemos julgá-los por isso...
   O sujeito tirou o sobretudo e logo ficou à vontade. Em menos de meio minuto, já estava fazendo piadas e contando histórias bizarras sobre as suas viagens pelo mundo. Era tão simpático e sorridente que logo a descofiança e a tensão transformaram-se em uma divertida algazarra. E foi assim até o momento infeliz em que a Razão tomou o baralho em mãos e começou a embaralhá-lo, anunciando o início da partida decisiva. Todos engoliram em seco e o silêncio pairou mais uma vez no local.
   - O que estão apostando? - perguntou o viajante.
   Depois de uma pausa significativa, a Razão respondeu, impaciente:
   - Um item raro e extremamente valioso: um fragmento de coração. Aquele mesmo, que está no centro da mesa. É algo único no mundo, por isso, se quiser entrar no jogo, terá que apostar alto... se puder, é claro. - acrescentou, secamente.
   - Um fragmento de coração!? Nossa, realmente, isso é algo muito valioso! Não tem preço, com certeza não tem preço... - comentou o sujeito, bastante surpreso. - Por um prêmio desses, qualquer um daria até mesmo a própria vida, não acham? Impressionante... Agora que soube disso, dá mais vontade ainda de jogar com vocês. Se me permitirem, eu gostaria de entrar nessa disputa...
   Essa era a deixa que estavam esperando. Queriam saber o que cada um dos outros realmente pensava a respeito da situação. Antes que a Razão pudesse responder, o Desejo logo interviu:
   - Por mim ele pode jogar. Todos nós estamos apostando tudo nesse jogo; se ele quiser arriscar, por que não?
   - É verdade... eu também não me oponho. Fica até mais emocionante, afinal, é mais uma chance de tentarem me vencer nessa... - desdenhou a Paixão, rindo.
   A Razão olhou interrogativamente para o Amor, que apenas disse, timidamente:
   - Eu não vejo por que não... 
   Como a decisão de todos foi positiva, a Razão declarou sem demora:
  - Ok. Joguemos, então!

(...)

  Continua!

(Next: Ensaio 1.1 - Poker entre amigos | Parte 2 )
http://setor003.blogspot.com/2010/11/ensaio-11-poker-entre-amigos-parte-2-em.html


Image: Poker by ~Kurobu on Deviantart



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sábado, 26 de junho de 2010

Perfil - Dica: Humano demais para ser sincero


  E não é que de repente me deparei com a obra literária de meu irmão Wolney? Criado este mês, o seu blog literário entitulado "Humano demais para ser sincero", já me interessou profundamente. E não é porque o cara é meu brother, se é isto que está pensando, caro leitor. É claro que, confesso, primeiramente o li apenas para conferir o que o gajo andava aprontando, mas não é que tive uma grande surpresa?! Não duvidava do seu potencial, longe disso, mas até que ele superou minhas expectativas iniciais... Parabéns, Wolney! Parabéns, "Caranga"! (apelido carinhoso derivado do delicioso crustáceo que, inacreditavelmente, ele nunca teve a oportunidade - e, digamos, a coragem - de provar!) Como prova de meu orgulho, cito aqui, em meu próprio blog, o seu projeto. Que continuemos escrevendo nossos pensamentos e sentimentos, até nossas mãos esfarelarem e nossos dedos caírem... Enfim, paz, amor e empatia, como dirias. Até!

Acessem: http://humanodemaisprasersincero.blogspot.com/ e confiram o trabalho do gajo!

P.s.: Peço desculpas aos leitores pela ausência de postagens neste mês de maio. Estive muito ocupado com a faculdade: trabalhos complicados, provas finais do período, enfim, sem tempo para dedicar ao blog. Mas espero que daqui para frente, tenha mais tempo sobrando, afinal, estou em férias! Hehehe!

P.p.s: Quanto ao "Ensaio 0.3 - Paraíso", creio que, depois de tanto tempo, finalmente o tenha terminado. Apesar de não estar exatamente como eu queria (por conta do espaço, o texto foi adaptado e reduzido), acho que o resultado final está razoável, para não dizer bom. Peço desculpas pela demora, contudo. ^^


Image: Bike by ~proyektvampyre on deviantart



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sexta-feira, 30 de abril de 2010

Ensaio 1.0 - Indefinivelmente...




"O mundo visto pelos olhos de um Anjo..."

   "Existem pessoas que nos tocam e nem sentimos. Existem pessoas que nos ferem, mas não deixam cicatrizes. E existem pessoas como você... que, só por existir, nos marcam para sempre."
...

   Eu ainda não sabia disso naquela noite. À beira do abismo, quando pensei que seria devorado pelos meus medos, você apareceu: linda, sedutora, indefinível. Você não pensou duas vezes ao me salvar das feras e revelar o verdadeiro significado de um milagre. Graças a você, eu passei a enxergar a vida de outro jeito, resgatando uma espécie de sentimento que foi esquecido há muitos anos atrás... Por isso, por esse e por tantos outros motivos, por todas as lembranças, momentos, conversas e também por tudo que não foi dito... Muito obrigado!
   Mas, se eu pudesse ver o mundo a partir do seu olhar, não seria dessa forma que eu enxergaria o desenrolar dos fatos... e mesmo assim, seria incapaz de definir o que aconteceu, pois o valor de um milagre é - e continuará sendo - impossível de traduzir em uma palavra...


INDEFINIVELMENTE...


"Como o amor e outras quimeras.
Como a lembrança de ter sido feliz... e de ter feito alguém feliz.
Como perceber que você ainda é capaz de amar.
Como ter a certeza de que alguém ainda acredita em você.
Como o doce sabor de um novo primeiro beijo.
Como ter a esperança de vivenciar um novo final feliz.
Como sacrificar um desejo, em troca de um milagre.
Como despertar de um sonho imensuravelmente bom... 
e sorrir, mesmo diante da realidade"


 (...)

_________________________________________


   Eu estava na sala 308 naquele momento. Você estava dormindo, mas de repente acordou assustado, como se não soubesse onde estava. Eu sorri para você, mas você nem pareceu notar; olhou na minha direção sem me ver, como se eu não existisse. Pela expressão em seu rosto, parecia estar procurando desesperadamente por alguma coisa, ou por alguém. Foi aí que eu percebi que você estava me procurando, perdido entre tons de cinza e falsas ilusões. "Eu estou aqui.", dizia, mas você não me ouvia. Ninguém me ouvia. Gritava, tentava chamar sua atenção, mas não conseguia nada além do silêncio de todos.
   Eu chorei, mas ninguém enxugou minhas lágrimas; eu me senti só, mas não havia ninguém com quem conversar; eu perdi as esperanças, mas não havia ninguém para me reanimar. Eu estava perdida, pois não tinha mais ninguém. Eu não tinha você. Eu era apenas um eco invisível aos olhos do mundo...
   Você me chamou de anjo, mas tenho mais defeitos que você. Sou mulher, mãe e amiga. Sou  imperfeita e pecadora. Sou temente ao amor... mas tenho medo da solidão. Não sou anjo ou demônio, mas posso me passar por qualquer um, se desejar. Apesar disso, não passo de mais uma pessoa vivendo neste mundo, cheia de sonhos e esperanças, mas também cheia de medos e incertezas. Uma pessoa como outra qualquer...

...

   Sigo seus passos, hesitante. Ouço as estátuas, o ritmo de seu coração, os sussurros dos seus receios.. Me desespero ao pensar que você vai desistir de mim. Estamos agora no mesmo lugar em que nos beijamos pela primeira vez...o lugar onde tudo realmente começou. Lágrimas. Eu não quero desaparecer para sempre, não quero que você me esqueça. Quero dizer que te amo. Mas... será que o que eu quero sentir é o que sinto de verdade?
   Então, pela primeira vez, pensei em tudo que vivemos e finalmente entendi. Agora, eu estou pronta para abrir meu coração e te dizer o que sinto... sem esconder mais nada.


(...)

________________________________________________


   Abro os olhos. É difícil enxergar seu rosto, pois minhas lágrimas se confundem com o seu semblante. Mas ainda posso vê-los brilhando, como duas pedras preciosas, arautos da felicidade... "Vai ficar tudo bem", eles me dizem. "Eu estou aqui." Logo, não são apenas seus olhos que insistem em dizer isso, mas também seus lábios, tentando me tranquilizar. Fico feliz. Ao menos uma última vez, posso olhar bem dentro de seus olhos, sem nenhuma hesitação. Tento falar, mas ela me repreende com um gesto, dizendo que logo a ajuda chegará, que eu preciso poupar minhas forças. Eu sei que é inútil, mas concordo com a cabeça. Já é tarde... sinto que não haverão milagres hoje. Dando um sorriso, me rendo ao momento final... mas ainda há alguma coisa pendente; ainda há algo a dizer. 
   - Eu te procurei por tanto tempo... mas agora, quando finalmente te encontrei, entendi que aquilo que eu realmente procurava estava dentro de mim, o tempo todo. Eu te agradeço por isso. Muito obrigado por ter surgido na minha vida...
   Ela sorriu. Uma lágrima escorregou dos seus olhos e desceu pela sua face, como uma estrela cadente, para repousar em meu rosto pálido e sereno. Era hora de dizer adeus...
   - Você sabia que os anjos não dizem "adeus"? - perguntei, sorrindo. - Porque não existem palavras para descrever um sentimento como a saudade. Em vez disso, eles apenas vivem plenamente até o último momento... e sorriem... diante do... inevitável...

(Pois eles sabem que a vida seguirá o seu caminho, indefinivelmente...)

As cortinas negras se fecham para sempre. A última coisa que vi foram as estrelas que brilhavam intensamente, como que tentando competir com o brilho do teu olhar.


FIM



"Com o perdão de um pecador que quis apenas sonhar uma última vez..."


**Dedicado a uma pessoa muito especial, que nunca será esquecida. Obrigado por tudo e até um dia.**


Leia também: Ensaio 0.9 - Indefinível

(Next: Ensaio 1.1 - Poker entre amigos) 

Créditos:
- Imagem do título: Angel_by_Vampirenish on Deviantart. 
- Imagem do rodapé: The_Heart_Key_by_deaddamien on Deviantart.



quarta-feira, 24 de março de 2010

Especial - Filosofia da Perseverança


"Acredite..."

  "Atravesso os portões do Paraíso. Sigo em frente: triunfante, decidido, maravilhado. Eu posso ver além: todas as verdades, todas as respostas, a fonte da sabedoria. Eu posso sentir algo novo e desconhecido: sem incertezas, sem questionamentos, sem aflições. Eu vejo entes queridos: velhos amigos, pessoas saudosas que já não via há anos, e todos eles vêm sorrindo ao meu encontro. Eu também estou sorrindo, totalmente feliz: sem lamentações, sem receios, sem sofrimento. Apenas a paz... Atravesso finalmente os portões do Paraíso, mas há algo que não posso ver, e essa ausência se transforma em um lampejo de angústia em minha alma. Onde ela está? Eu percorri todo este caminho só para te encontrar, mas onde está você, meu anjo?"
(...)

  - Onde...?
  Abrem-se os olhos, relutantes. O despertar de um sonho inquieto, o fracasso e o habitual desespero. Estou deitado em um leito de hospital, confuso e com uma baita dor de cabeça. Suspiro. O que teria acontecido?
  Tento me levantar, mas não consigo. Depois de um tempo, uma enfermeira vem verificar o meu estado; colaboro com os procedimentos, sem reclamar. "O que aconteceu comigo?", pergunto. Ela não responde, me pede calma, o médico já está a caminho. Entediado, peço papel e caneta, se possível. "Para matar o tempo", informo, quando ela me questiona, um tanto desconfiada. Depois de mais alguns minutos, ela me traz o que pedi, e me tranquiliza, revelando que eu tenho muita sorte em estar vivo. "Sorte..." Agora as coisas começam a clarear um pouco. Fico imóvel por um bom tempo, refletindo sobre aquela noite. "Era ela? Teria realmente a visto?" Não importa mais. Acabou. Pelo menos, acabou para mim. Observo o papel em branco; um velho amigo, fiel confidente. Enfim, traduzo meus sentimentos em um poema, contendo muitos dos elementos de minha busca, agora reunidos em minha maturidade:

Filosofia da Perseverança


Ainda que eu soubesse
Que o amor é apenas uma quimera
Criada para tranquilizar os homens
Eu não desistiria.
Ainda que eu soubesse
Que um instante não é mais que um relâmpago
No vazio da Eternidade
Eu não desistiria.
Ainda que eu soubesse
Que sou um mero fantoche
Nas mãos de anjos e demônios
Eu não desistiria.
Ainda que eu soubesse
Que para sempre estarei condenado
Ao simples ato de sonhar
Eu não desistiria.
Ainda que eu soubesse
Que palavras doces são mentiras
Ecos de sentimentos ocultos
Eu não desistiria.
Ainda que eu soubesse
Que a felicidade é como o vidro
Cujo semblante não posso enxergar
Eu não desistiria. 
Ainda que eu soubesse
Que o paraíso não existe
E a realidade é uma amarga ilusão
Eu ainda não desistiria.
Pois jamais esqueceria
Do que me disse um amigo
Quando eu era apenas um menino:
"Se você puder acreditar em si mesmo,
Você poderá mudar o seu destino.
Se você puder acreditar nas pessoas,
Você descobrirá a essência da vida.
E se você puder fazer essas pessoas
Acreditarem nelas mesmas
Você poderá um dia mudar o mundo."
Foram essas palavras de profundo sentido
Mas de tão fácil entendimento
Que me ensinaram a continuar caminhando
Sem nunca deixar de acreditar
Pois ainda que eu ande sozinho
Pelo Vale da Sombra da Morte
Perdido dentro de mim mesmo
Eu ainda não desistiria
E não perderia a fé
Pois enquanto eu acreditar no Amor 
O impossível não existirá.
Você acredita?


  - É frustrante. - murmuro, após terminar de escrever. - Assim como a vida, em si.
  Repouso a cabeça no travesseiro e me entrego, finalmente, ao descanço merecido, mas intranquilo. Meus olhos fitam apenas o teto não familiar, e essa imagem permanece estática até a chegada de algo semelhante ao sono. 
  - Então, só me resta acreditar, não é? - sussurro, em um último delírio antes de adormecer.


**O poema original "Filosofia da Perseverança" foi escrito no ano de 2007, conseguindo o primeiro lugar no Concurso de Poesias do Colégio Almirante Tamandaré. Neste conto, reescrevo e finalizo o poema, de forma a adaptá-lo à sina do Pecador, mas não foram necessárias grandes mudanças, preservando assim a essência do original.**


Image: The_final_act_by_theflickerees - on Deviantart




quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Ensaio 0.4 - Werneck


"Veja o que eu vejo."

"Se a felicidade tivesse forma, qual forma seria?
Acho que deve ser algo como o vidro
Por que você geralmente não a percebe,
mas definitivamente ela está lá.
Porém, cedo ou tarde você vai perceber
Porque se você olhar de um ângulo um pouco diferente,
O vidro reflete a luz.
E o que pode ser visto,
É a prova de uma grande existência, maior que qualquer coisa
."

(...)

    Havia uma pichação na parede da estação Werneck que sempre me chamou a atenção. A primeira vez que a vi foi há muitos anos atrás; naquela época eu mal sabia ler e não compreendi exatamente o que aquelas palavras queriam dizer. Hoje - infelizmente ou não - eu posso compreendê-las muito bem...
   O texto falava sobre o verdadeiro valor da felicidade. Estava escrito em tinta escarlate, bem chamativa e legível, mas as pessoas - ocupadas em seus interesses e afazeres - não reparavam na mensagem. Por algum motivo que desconheço (ou por motivo nenhum, não sei dizer), eu acabei olhando justamente naquela direção, na primeira vez em que estive no metrô. Estávamos indo visitar uns parentes, eu e minha mãe, e ao entrarmos na plataforma de embarque da estação, notei algo escrito na parede lateral, à esquerda do mapa da cidade do Recife. É claro que tentei ler a mensagem, mas não consegui entender o conteúdo do texto. Perguntei à minha mãe o que aquilo poderia significar, mas ela estava muito apressada e apenas murmurou algo do tipo "Não solte a minha mão...!", antes de me arrastar com firmeza para o interior do vagão. Lembro que fiquei por um bom tempo pensando naquela mensagem. Depois daquele dia, muitos anos se passariam até que eu fosse rever aquela parede e finalmente compreender as palavras pichadas em tinta escarlate...

***

   Hoje, revejo aquela mesma parede, mas as palavras foram apagadas. Em seu lugar, apenas a imensidão branca e vazia, onde só se é capaz de enxergar a lembrança de dias mais felizes... ou melhor, dias que hoje parecem ter sido mais felizes, agora que fazem parte do passado. Fecho os olhos, e imagino aquela noite, quando o milagre aconteceu. "Meu anjo...". Hoje, finalmente te encontrarei, pois às custas de muitas lágrimas e sofrimento eu consegui uma pista de onde poderás estar...
   Sigo adiante, me sento em um dos bancos encardidos da estação e espero, inquieto. Minutos depois, o expresso passa inabalável, sem dar a mínima para a minha impaciência. Xingo. Sem escolha, continuo esperando. Já passa das nove... É tarde, não tenho muito tempo. Hoje talvez seja minha última chance...
   Retiro uma pequena garrafa de wisky vagabundo de dentro do bolso esquerdo do paletó. Esta sim é a minha fiel companheira, a amante dos dias sombrios, a melhor ouvinte, guardiã dos temores e receios mais profundos. "Mas que diabos...? Está quase vazia..." Examino o rótulo por alguns instantes e bebo o que resta do líquido amarelado, sem remorso. Depois de mais alguns minutos, finalmente o trem chega. Apesar de vazia, guardo cuidadosamente a garrafa no bolso, e entro no vagão. 
    "Estação Werneck. Destino: Camaragibe" - anuncia uma voz feminina. Suspiro, indiferente, e me sento em frente à janela. "Werneck..." Engraçado, nem sei o que diabos isso significa. Seria alemão? Tem uma pinta de alemão...  Enfim,  não importa. Há coisas mais importantes em jogo hoje...
   Observo a plataforma de embarque pela janela, tentando encontrar alguém interessante entre as poucas pessoas que saíram dos vagões. É um dos meus passatempos inúteis. Próximo às escadas, um grupo de jovens faz uma grande algazarra. Uns idiotas quaisquer se achando... Gente desse tipo sempre aparece no metrô (e em muitos outros lugares, infelizmente). Os ignoro. Do outro lado, vejo uma quarentona e um garotinho seguindo de mãos dadas em direção à saída, provavelmente mãe e filho. Estranho, eles me lembram do dia em que vi a pixação escrita em escarlate pela primeira vez ...
   Os jovens se dispersam. Dois deles, ao invés de descerem as escadas, como os outros, decidem ir na direção contrária, caminhando cheios de si e encarando de forma suspeita a senhora e seu filho. Noto que eles parecem estar alterados e se comportando de modo estranho... 
   - Merda...! - exclamo, antevendo o perigo. Rapidamente, me levanto e cruzo as portas retráteis, que por segundos não se fecham antes que eu pudesse fazer qualquer coisa...
    Eles se aproximam cada vez mais. A senhora, desconfiando das intenções dos dois, fica aflita e apressa o passo, segurando com mais firmeza a mão do garoto de um lado e sua bolsa de couro do outro. Vendo a reação da mulher, um deles, então, contorna a passagem de acesso à rampa, correndo até a saída e lá se prostando de forma a barrar a passagem. Sem saber o que fazer, a mulher pára, assustada. Atrás dela, o outro melinate chega lentamente, sorrindo e sacando uma navalha do bolso lateral do jeans...
    - Passa a bolsa, tia! - anunciou o Candidato a Marginal N° 1, que estava bloqueando a passagem. - Vamo logo, ou nóis fura o pirralho! - acrescentou, revelando por sua vez um canivete suiço de aparência imunda. 
   Muito nervosa e mais pálida do que giz, a mulher tremia muito. Sua reação natural foi a de abraçar o garoto com força, na tentativa de protegê-lo. "Por favor, não o machuque...!", tentou dizer, quase sem voz, e depois disso não conseguiu mais falar, devido ao nervosismo. Mas não largou a bolsa, o que irritou o Candidato a Marginal Nº 1, que se adiantou e começou a xingar, canivete em punho.
   - Bora, porra! Passa a bolsa! Quer que eu te fure, é?
   Nesse momento, eu já estava próximo o bastante do Candidato a Marginal N° 2, que estava mais atrás e de costas para mim, sem ter como reagir... Antes que ele pudesse se dar conta, já estava caído no chão, segurando dolorosamente a "dobra" da perna direita. Aproveitando o golpe de sorte, apliquei um chute com toda a força na cabeça do delinquente, deixando-o sem sentidos. Foi bem mais fácil do que pensei, vai ver porque ele estava muito chapado, ou sei lá. Mais a frente, o Candidato a Marginal N° 1, percebendo o que tinha acontecido, empurra a mulher com brutalidade, que cai no chão. Ele então tenta dar uma de esperto e puxa o pirralho para o seu lado, de modo a fazê-lo um refém, ameaçando-o com o canivete.
   - Seu filho da puta! Olha o que você fez! - xingou ele alto, apontando pra mim, furioso. - Fica longe, se não eu furo esse merdinha! Juro que eu furo ele! - e posicionou a lâmina encardida contra a garganta do garoto, que tremia.
  - "Puta merda, o que eu faço?", pensei, desesperado. "A minha intenção era apenas ajudar, e agora aqui estou eu, piorando tudo. Porra!". Acima dele, o relógio da estação mostrava que eu não tinha mais tanto tempo... O último trem passaria a qualquer momento e eu teria de pegá-lo se ainda tivesse alguma esperança de reencontrá-la... Dessa vez um atraso seria fatal, e provavelmente jamais encontrarei outra pista. Era preciso escolher: abandonar os estranhos agora e ir até ela ou ficar e arriscar perder minha última chance de revê-la...
   "Preciso resolver isso logo. Eu consigo. Vai dar tudo certo..."
   Tirei a carteira do bolso e tentei negociar. 
   - Tome, aqui tem dinheiro, pode levar. Só deixe o garoto em paz, ok? Eu não vou mais reagir...
   - Cala a boca, seu puto! - berrou ele em resposta, visivelmente nervoso. - Joga essa porra pra cá! E a bolsa da dona também! Vamo, vamo logo!
   Fiz o que ele mandou, tentando me manter calmo. Depois de apanhar a carteira e vasculhar a bolsa, ele me olhou de um jeito malicioso e arrastou o garoto até a plataforma de embarque. Tentei seguí-lo, mas ele continuou me mandando ficar longe. No chão, sem conseguir se mexer, a mãe do garoto chorava, desesperada. Foi então que eu perebi o que ele ia fazer. Ele não pretendia deixar o garoto depois de tomar certa distância, ele ia...
   - Não faça isso! - e corri na direção deles para tentar impedir, mas era tarde demais. Ele tinha empurrado o garoto nos trilhos e corrido em direção à saída, logo depois. "Mas que filho da puta..." Continuei correndo, o som do  último trem se fazendo audível não muito longe dali...
   Pulei lá embaixo, sem pensar direito, o coração acelerado. O garoto estava meio tonto, mas conseguiu se levantar. Suspendi o guri e o instrui a tomar impulso e subir na plataforma, se agarrando nas bordas. Ele assentiu e fez como eu falei. Olhei para a esquerda. O trem já estava vindo. Engoli em seco e fiz um grande esforço para tomar impulso e subir a tempo...
   Felizmente, eu consegui, pois o trem reduziu a velocidade antes de parar na estação. Se tivesse sido o expresso... Ofegante, o coração ainda palpitando, observei o garoto tentando ajudar a mãe, mais adiante. Ela chorava e o abraçava... "Ainda bem que deu tudo certo..." 
   Atrás de mim, as portas retráteis se abriram. Sorri e me virei, para entrar no vagão, quando senti uma lâmina fria perfurar minhas costas uma, duas, três vezes. O Candidato a Marginal n° 2 - que nesse meio tempo tinha acordado - devolvera na mesma moeda meu ataque surpresa anterior. Senti um líquido quente escorrer pela lateral do corpo, e cambaleei, sem forças, caindo no chão. Aproveitando o golpe de sorte, o meliante aplicou um chute com toda a força em meu abdômen, fugindo logo depois. Com os olhos quase fechados, meio tonto e gemendo devido a intensidade da dor, olhei ao acaso para o interior do vagão.
   Lá estava ela. Estava sentada, pensativa, um livro apoiado no colo. O que ela estava fazendo aqui, nessa estação? Ela me olhou de volta, surpresa, nossos olhares se cruzaram. Na mesma hora senti o peso de sua essência, o peso de toda a sua alma. É assombroso, e ao mesmo tempo, maravilhoso. Seria mesmo ela? Não seria um delírio, um último desejo materializado pela força da minha vontade? 
   Ela se levantou e veio em minha direção, cruzando as portas um segundo antes de se fecharem. O último trem se fora. Agora ela estava em pé, na minha frente, e também parecia não acreditar no que estava vendo. Por alguma razão, ela não estava onde deveria estar, e eu não fui para onde deveria ir. Era ali, o tempo todo, onde deveríamos nos encontrar... provavelmente pela última vez.

* * *

   Maravilhado, o garoto não podia desviar os olhos daquela visão estonteante. Ela era... um anjo! Sua mãe o chamava, abraçando-o com força. "Rodrigo, Rodrigo, não está me ouvindo? Vamos, temos de ir logo, antes que aqueles marginais voltem!". Relutante, ele olhou para sua mãe, se perguntando como ela poderia estar preocupada com isso quando diante deles havia um ser tão assustadoramente belo? "Não está vendo, mamãe? Olhe, olhe pra ela! É um anjo, ela é um anjo!", e se virou para adimirá-la novamente. Ele poderia olhá-la por anos e anos, pela sua vida toda, e ainda assim não se cansaria de contemplar sua beleza. Faria tudo por ela, qualquer coisa, só para ficar com ela, só para tê-la eternamente ao seu lado...
(...)
   Dona Olga jamais poderia entender o que seu filho estava olhando com tanto afinco, muito menos o que ele quis dizer com aquele estranho comentário. Ela não podia enxergá-la - mesmo estando frente a frente com aquele ser encantador - simplesmente porque não queria enxergar. Aos seus olhos, seu filho apenas olhava o marginal caído e ensanguentado, que pela graças de Deus havia brigado com seus comparsas, dando a ela e ao pequeno a oportunidade de saírem dali o mais depressa possível. "Vamos, garoto, não teime comigo, eles ainda podem estar por perto!", e ignorando os esforços do menino em permanecer no local, o arrastou pelo braço até a saída, passando apressadamente pela parede branca onde outrora havia uma pichação escarlate... Aquela mesma pichação que falava sobre a verdadeira forma da felicidade...


Image: Heaven, by Penetre - on Deviantart



Ensaio 0.3 - Paraíso


Ele abriu os olhos, suspirou e voltou sua atenção para os céus... tentando enxergar além das nuvens. Então, se ouviu um murmúrio, vindo das águas mais profundas que circundam o abismo chamado coração:

"Ainda que eu falasse a língua dos anjos...
eu jamais poderia traduzir em palavras o quanto você é importante para mim.
Ainda que eu cruze os portões do paraíso...
eu jamais poderia conhecer a felicidade longe de ti."

- de um mortal, um pobre pecador.

(...)

_____________________________________________ 
I

  As portas da igreja estão abertas para a noite. Lá fora, a terrível tempestade continua a desabar impiedosamente, como em uma alusão ao meu sofrimento. O ruído característico dos pingos e os estrondos ensurdecedores dos trovões ecoam em meus ouvidos, amplificados pela acústica do salão. Estou além da penumbra, diante do altar, imóvel, indeciso, incapaz. Vez ou outra, os clarões dos relâmpagos revelam os detalhes da arquitetura barroca, bem como a simplicidade das acomodações, a beleza dos afrescos, as imagens suntuosas dos santos... meras impressões artísticas maltratadas pelo tempo, todas sufocadas pelo estranho sentimento de solidão presente no local. Algo está errado... Não me sinto amparado ou tranquilizado, não consigo abrir meu coração para Deus. É horrível. Sou a maior vítima de meu ceticismo niilista... Fico inconscientemente me perguntando: será que minhas preces chegarão até Ele? Eu teria fé suficiente? Não posso me entregar à dúvida ou ao desespero: preciso encontrar uma resposta, preciso descobrir o caminho certo. Mas seria possível para mim?
   - Eu nem sei por onde começar... - murmuro para mim mesmo. Ergo a cabeça, e meus olhos fitam a abóboda do salão, onde dezenas de anjos foram retratados habilmente pela imaginação do artista. É uma bela pintura, mas... Não corresponde à realidade. Lembro da luz dos olhos dela, da sua voz, da sua beleza implacável. Lembro da sua atitude, das suas palavras, da sua personalidade única. Lembro do seu abraço, do seu beijo, do calor humano. Lembro de sua essência indefinível... Quem quer que tenha pintado aqueles afrescos, jamais conseguiria captar a forma primordial, a centelha invisível que eu consegui enxergar quando a vi completamente naquela noite, pela primeira vez. Nem todas as cores, nuances e texturas poderiam descrever o quão magnifica é a verdadeira face de um anjo...
   - Eu a amo... - murmuro para mim mesmo, e a medida que repito estas simples palavras, a idéia escapa de um tímido sussurro para soar claramente, em alto e bom tom, se sobressaindo aos ruídos angustiantes da tormenta, de modo que o mundo inteiro possa ouvir - Eu a amo, eu a amo, eu a amo!!! Essa é a única resposta para as inquietações em meu coração. Agora sei, tenho certeza, não posso negar esse sentimento. Por isso...
  - Deus, por favor, peço-Te, com toda a minha fé, ainda que não seja forte o suficiente, que me ajude a reencontrá-la...!
  Um clarão, muito mais longo do que os outros, iluminou o salão, seguido de um ribombar alto, como se um milhão de trombetas respondessem em confirmação às minhas preces... Seria verdade?
(...)
   - Quem está aí? - perguntou de repente uma voz rouca, vinda da escuridão.
  Assustado, voltei-me para a esquerda, de onde a voz tinha saído. Um pequeno ponto de luz caminhava a passos lentos em minha direção, cada vez maior e mais próximo. Segundos depois, pude ver a silhueta de um padre gorducho, iluminada pela luz bruxuleante de um velho lampião. Apesar do frio, ele suava muito, e pelo jeito que sua mão tremia, parecia estar mais assustado que eu.
   -Q-q-quem é você? O q-que você está fazendo aqui? - gaguejou ele. - Seus vândalos, eu já não disse para nunca mais voltarem aqui? Então não se contentaram em roubar as imagens do altar?!
  - Me desculpe, senhor, mas eu não estava roubando nada...! Pensei que não havia ninguém aqui... - me apressei em responder. - As portas estavam destrancadas e resolvi me abrigar aqui, até que a tempestade passasse... Sinto muito, achei que estivesse sozinho...
  Ele ofegava um pouco, tenso, e me fitou dos pés a cabeça, erguendo a sobrancelha, como se estivesse analisando o meu caráter através da minha aparência (que no momento, infelizmente, não era das melhores). Após enxugar o suor da testa na manga das vestes, o padre gorducho perguntou novamente:
  - O que você estava fazendo aqui, diante do altar? Qual eram as suas intenções hein? Tem certeza de que não está mancomunado com aqueles marginais?- ele fechou a cara, segurando o lampião com firmeza, ainda temeroso. - Seus vândalos, vocês não perdoam nem mesmo o templo de Deus? Esse é um lugar sagrado! Deviam se envergonhar de seus pecados, uns rapazes tão jovens...
  - Não é nada disso, senhor! Seja lá o que geralmente fazem por aqui - o que definitivamente é um desrespeito! -  juro que não sou um desses vândalos. Estou falando a verdade, entrei aqui por causa da chuva, pensei que o lugar estava abandonado, pensei que estivesse sozinho... Só queria me abrigar contra a tempestade!
   Ele mordeu o lábio inferior e se pôs a me olhar longa e profundamente. As rugas em seu rosto aos poucos se suavizaram, e então ele falou:
  - Ah, é mesmo? Pois saiba que as juras tem poder! Em todo o caso... Eu também pensei que estivesse sozinho, mas você está aqui, não é?! E, realmente, não tenho culpa do templo estar nesse estado, mas está longe de ser considerado um local abandonado, não acha? Se bem que essas goteiras não colaboram em nada... - acrescentou ele, apontando para algumas infiltrações no teto principal.
  - Claro... Me desculpe, senhor padre. Espero que não me julgue mal. - e sorri, hesitante. Ele parecia mais calmo, mas ainda estava bem desconfiado. Resolvi sair do local, antes que ele mudasse de idéia a meu respeito.
  - Eu não quero incomodá-lo, por isso já estou indo...
  - Hummm... Nada disso. - interrompeu ele, sério. - Você mesmo disse que estava se abrigando aqui por conta da tempestade, não disse? Ora, então fique! Você pode aproveitar e me ajudar a dar um jeito nessas goteiras, não é? Pelo menos, podíamos reparar as da sacristia, que estão me incomodando muito...
  Surpreso, fiquei em silêncio, sem saber o que responder. Ele então retomou a palavra, perguntando:
  - A não ser... que você tenha mentido e esteja desconfortável com a idéia, seria isso? Jurou em falso, por acaso?
  - Não... não menti! Mas...
  - Então, é melhor ficar. - determinou ele. - Além do mais, você interrompeu a ceia...  bom, tem o bastante para nós dois, se estiver com fome.
  Ele me encarou, decidido. Diante do argumento, não vi problema em ficar... afinal, a tempestade ainda desabava lá fora. E eu estava morrendo de fome...
  - Obrigado, ficarei.
  - Ótimo, emtão me acompanhe, rapaz!

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II

  Estávamos em um cômodo mal iluminado, provavelmente o local onde ele ceiava, antes de me descobrir. Meu estômago estava indignado de tanta fome e anunciou a sua revolta, em um brado alto. Percebendo o meu embaraço, o padre ofereceu um pedaço de pão, uma fatia de queijo e um copo de vinho. Devorei tudo sem pressa, dando grandes goladas no saboroso líquido vindo do fruto da uva. Enquanto eu comia, o padre falava e falava, desabafando suas mágoas:
   - Não temos verba para a reforma da Igreja. Se fosse em outros tempos... as pessoas se importavam mais. Esse lugar é um patrimônio histórico! Isso deve valer alguma coisa, não acha? - e sem me dar tempo para responder, continuou: - Eu acho o seguinte: a prefeitura, o povo, o bispo ou até mesmo o santo Papa: alguém deveria tomar uma atitude ao invés de nos deixar cair aos pedaços! - esbravejou ele. - Bom, talvez eu esteja exagerando um pouco... - acrescentou, pensativo. - Mas, olhe só essas goteiras! Está vendo isso?! Que absurdo! Logo irão inundar a sacristia! - e bateu na mesa com força.
   Concordei, alarmado. Para a minha sorte, ele continuou despejando suas queixas, mesmo depois de terminada a refeição. Eu preferia apenas concordar com ele, quase não falava. Meia hora depois, notei os ruídos da chuva lá fora mais brandos, de modo que pensei em ir embora.
  - Obrigado pela refeição. - comecei, aproveitando uma pausa do padre gorducho. - De qualquer forma, me desculpe. Não queria incomodá-lo. Eu só me aproximei do altar porque... porque eu precisava de uma resposta... Enfim, eu estava apenas tentando... bom, esqueça. Me desculpe. Espero que tenha acreditado em mim. Ah, parece que a chuva finalmente estiou. Até logo, então. - dito isto, me levantei, e fui caminhando até a porta da sacristia, um tanto frustrado.
  - Espere! Para que tanta pressa, meu rapaz? - chamou ele. - Por acaso não achou mesmo que eu iria fazê-lo reparar essas goteiras todas?! Estava apenas lhe testando, meu caro, era apenas uma brincadeira! Fique mais um pouco; não sei o porquê, mas gostei de sua companhia.
  Parei e me virei para encará-lo, surpreso. Ele então começou, em um tom mais sereno. - Não precisa se alarmar, meu jovem. Eu só gostaria de ouví-lo, já que fiquei por toda a ceia falando e falando, sem me dar conta. Ao vê-lo agora, bem... tenho um estranho pressentimento de que talvez você esteja precisando de ajuda.
  Ainda o encarei, atônito. Era tão transparente assim, o meu estado de espírito?
  - Apesar de você ter entrado aqui sem permissão, e de eu não saber quais eram suas reais intenções, eu sinto que é a minha obrigação tentar ajudá-lo. Sinto ter falado tanto, acho que acabei lhe aborrecendo. Gostaria de me acompanhar até o confessionário? Desabafar poderia ser de grande auxílio, rapaz.
  Hesitei. Mas que papo era esse agora? Parecia ser uma pessoa totalmente diferente falando comigo... Toda aquela segurança, parecendo adivinhar o que eu estava sentindo... Seria o que chamavam de inspiração divina? Pensei um pouco, até que finalmente respondi:
  - Tudo bem.
  Então, acompanhei aquele estranho padre gorducho ao confessionário, esperando que ele talvez pudesse me ajudar, temendo apenas que o homem não sofresse de algum distúrbio de polaridade... ou coisa do tipo. Mas eu ainda era um incrédulo sobre as formas pelas quais Deus pode agir...

* * *

  - Apaixonado por um anjo? - perguntou o padre, incrédulo. - E você acha que... a única forma de reencontrá-la é indo até o Paraíso? É isso?
  Estávamos já há algum tempo no confessionário, mas meu depoimento parecia não convencê-lo. Pelo contrário: ele começou a ficar aborrecido, talvez pensando que eu estava zombando de sua ajuda.
  - Sim. Eu acredito que seja a única forma. - respondi. - Procurei por ela em todos os lugares, mas não a encontrei.
  - O que você quer dizer? Está falando metaforicamente, não é, rapaz? É isso?
  - Não. Não é uma metáfora... Ela é um anjo. Eu sei. Infelizmente, ela desapareceu e...
  - Entendo...! - interrompeu ele, surpreso. - Eu pensei que estivesse com problemas, rapaz. Mas, pelo visto, você não sabe em que nível de problemas você se meteu, não é? É melhor estar falando sério, pois eu sou um homem de Deus! Não brinque com anjos ou assuntos desse tipo, onde já se viu isso?
  - Mas, padre, é verdade! Eu realmente a vi...! Ela...
  - Basta! Me fale qual é o seu verdadeiro problema, pare de fugir dessa forma, garoto! Não posso ajudá-lo se continuar inventando histórias mirabolantes como essas!
  Me calei, e dei um longo suspiro.
  - É incrível como nem mesmo o senhor é capaz de acreditar em mim... - recomecei. - Mas eu sei o que vi, o que vivenciei. Ela realmente era... enfim, esqueça.
  Dessa vez foi ele que fez uma pausa. Sem pensar, saí do cubículo, chateado. Logo, ele também saiu, enxugando o suor da testa na manga das vestes, nervoso.
  - Espere, rapaz. Eu... acredito em você. Mas eu precisava ter certeza... - ele ergueu a sobrancelha, desconfiado. - Você me dá a sua palavra? Não me censure, pois eu tenho os meus motivos. - acrescentou ele, ao ver meu olhar.
  - Sim, mas é claro. Não tenho porque mentir.
  - Entendo... - ele suspirou, preocupado. - Então, o que aconteceu? Me explique. - pediu ele.
  - Ela me salvou. - falei, sem esperar que ele realmente acreditasse. - Então, eu a vi, como ela era de verdade, entende? Eu pude enxergar sua essência. Eu não queria, mas não consegui resistir: acabei me entregando totalmente...
  - Então, você quer dizer que se apaixonou de verdade por ela?
  - Sim.
  - E você também falou sobre um milagre... poderia descrevê-lo?
 - É impossível. Mesmo se o senhor estivesse lá, no exato momento, não poderia compreender o que aconteceu... Nem mesmo eu compreendo.
  - E então? O que houve?
 - Eu já disse. Após aquela noite, passamos alguns poucos momentos juntos, até que ela desapareceu, sem nenhuma explicação. Acho que sou o culpado por isso, mas não consigo entender...
   Fiz mais uma pausa e perguntei, frustrado:
   - Me diga, padre: qual é o caminho mais rápido para o Paraíso?
  Ele parecia surpreso com a pergunta.
  - Bom... você deve se arrepender de seus pecados, primeiramente. É por isso que eu digo: esqueça esse delírio, essa história. Não vai te levar a nada. - e continuou, sem me deixar responder. - Escute: os anjos não devem se relacionar desta forma com os mortais, rapaz. Isso não é natural, é uma relação sem futuro, impossível. E, se fosse possível, por algum estranho e desastroso milagre: seria um pecado terrível desviá-la dos desígnios divinos... e a ti, o que dizer de seus próprios propósitos? É isso que você quer?
  - Eu a amo...! O que devo fazer, então?
  - Rapaz... você realmente acredita nesse amor? - perguntou ele, o rosto agora expressando preocupação.
  - Mas é claro! Por que não acreditaria...? - retruquei, aborrecido.
 - Sei... Infelizmente, acho que sei a melhor forma de ajudá-lo. Eu tenho um amigo de infância que é psicólogo, ele tem uma clínica no centro da cidade e...
  - Para um padre, falta-lhe fé. - disse secamente. - Não consegue enxergar a verdade em meus olhos?!
  Antes que ele pudesse responder, saí da sala, indo em direção ao salão principal. Estava quase nas portas de entrada quando ele me alcançou.
  - Rapaz, espere!
  Olhei para trás, furioso.
  - Você não entende, padre. Eu não quero impedí-la de seguir seu caminho, nem pretendo me desviar do meu. Minhas atitudes não são egoístas, muito menos meus sentimentos. Eu simplesmente acredito que a encontrei naquela noite por alguma razão sublime. Preciso descobrir o que aconteceu! Ela me salvou do abismo, e agora, temo que ela esteja se punindo por isso. Tenho de encontrá-la mais uma vez! Talvez eu possa ajudá-la, de alguma forma. Mesmo que tenha que ir até os portões do Paraíso... ou às profundezas do Inferno. Não vou desistir, pois acho que esse seja o verdadeiro propósito por trás da minha existência!
  Ele me olhou, uma mistura de temor e admiração. Parecia não acreditar no que estava ouvindo, mas ao mesmo tempo, um sorriso lhe escapava dos lábios.
  - Você tem muita fé. - declarou ele, inesperadamente. - Mas talvez, nessa ânsia de encontrá-la e, como diz, salvá-la, você acabe se perdendo.
  O encarei, espantado com o argumento.
  - Não se preocupe. Não vou deixar isso acontecer novamente.
  - Não deveria alimentar essa loucura, rapaz. Mas, se quer mesmo saber, algo me diz para acreditar nessa sua fábula romântica. Apesar de estar indo contra os meus princípios...
  Ele sorriu, e se aproximou lentamente.
  - Eu, mais do que ninguém, posso entender o que você sente. Porque eu... eu sou um anjo!
  - O quê?! - exclamei. - Acho que não ouvi direito...
  - Na verdade, eu fui um anjo. Mas isso é uma outra história... Enfim, o que posso dizer é que não acabou bem, para ambos. - ele então começou a falar rapidamente, como se temesse que a coragem de revelar seu passado se esvaisse. - Eu fui um covarde, um fraco, um tolo, e neguei a responsabilidade que me foi incumbida. E acabei me apaixonando... por ela. Eu deixei que ela sucumbisse, mas não posso permitir que você cometa os mesmos erros, meu rapaz. Não posso!
  - Eu não estou entendendo... o que o senhor quer dizer com isso? - perguntei, ainda sem acreditar no que estava ouvindo.
  - Meu rapaz... todos têm o direito de fazer uma escolha. Até mesmo os anjos... e você não é exceção. Se lutar por esse amor, certamente se perderá... Teria você fé suficiente nesse sentimento, a ponto de percorrer os mais árduos caminhos e as mais tortuosas estradas, atravessando até mesmo o Inferno, afim de vê-la uma vez mais? Você terá de sacrificar tudo, e nem assim existem garantias de que irá salvá-la. Pois eu lhe garanto: ela corre um grave perigo; e já não pode ser chamada de anjo, como eu.
  - Não me importam os riscos, pois sei que conseguirei. E jamais desistirei, mesmo que mergulhe nas profundezas do Inferno para reencontrá-la; seguiremos de mãos dadas a caminho do Paraíso! Isso é uma promessa!
  O padre, ou anjo, me olhou admirado.
  - O verdadeiro caminho para o Paraíso - sussurrou ele, a um palmo de distância. - começa dentro de si mesmo. Conhece-te, aprende com teus erros, persista na sua fé; assim, um dia, você entenderá o que realmente importa. Lembre-se: o maior inimigo que encontrarás é a ti mesmo. Deus te abençoe, rapaz. Que Ele possa te amparar e auxiliar na estrada que escolheste!
  Eu sorri, impressionado com a atitude, e o agradeci.
  - Obrigado, padre. Muito obrigado pelas palavras. Então... até logo. Nos reencontraremos um dia, tenho certeza. - Ele riu, contente:
  - Acredito nisso! Você é feito de uma fibra mais resistente do que imaginas. Confia!
  Depois da breve despedida, seguimos pelo mesmo salão em cuja abóbada estavam retratados os anjos em deleite no paraíso. Abri as portas de carvalho, cumprimentei mais uma vez o padre, e segui meu caminho, sem olhar para trás. Lá fora, a garoa persistia, mas não chegava a lembrar a terrível tempestade da véspera.
  - Esse rapaz é louco... - murmurou o padre, quando já me perdia de vista. - Mas, talvez, um louco tenha mais chances de chegar ao Paraíso do que todos os sábios do mundo, não é?
 

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III

  Caminho pela orla, pensativo. A chuva há muito passara; à minha direita, os raios de sol começam a surgir do horizonte, redefinindo as cores da paisagem. Dou um leve sorriso. Fecho os olhos e sinto a brisa tocar suavemente o meu rosto.

* * *

   Ele abriu os olhos, suspirou e voltou sua atenção para os céus... tentando enxergar além das nuvens. Então, se ouviu um murmúrio, vindo das águas mais profundas que circundam o abismo chamado coração:


"Ainda que eu falasse a língua dos anjos...
eu jamais poderia traduzir em palavras o quanto você é importante para mim.
Ainda que eu cruze os portões do paraíso...
eu jamais poderia conhecer a felicidade longe de ti."

  Era apenas um mortal, um mero pecador. Mas, aos meus olhos, ele era...
 

**Dedicado a todos os pecadores que, por um grande amor, trilharam o caminho do Paraíso... e do Inferno.**

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Image: Heaven's Door by 'bosniak - on Deviantart