quinta-feira, 30 de junho de 2011

Especial - Desventuras Juninas


 "Alavantú..."

   Junho: mês de santos, de festividades, de comidas típicas, de tradições. Entretanto, para um cara anti-social como eu, tudo não passa de um grande tormento. Durante trinta longos dias terei que suportar o triplo das músicas de forró de gosto duvidoso, além do estrondo das bombas rojão, do cheiro "ambiente" de pólvora, da fumaça ardendo nos meus olhos (me fazendo chorar de raiva) e de uma infinidade de comidas sem graça feitas de milho (eu não gosto de milho). Se eu tentasse mencionar tudo, teria que reviver o mês inteiro, o que eu com certeza não quero fazer. Mas, dentre todas essas coisas "agradáveis", existe uma da qual eu fujo como o diabo foge da cruz: a dança.

   Não me levem a mal, eu até gostaria de dançar agarradinho, tirar uma casquinha, cheirar o cangote de uma matuta e me aproveitar de sua inocência (mesmo que fingida). O problema, o GRAVE problema, é que eu nasci com uma total incapacidade para a dança... O velho "dois pra lá, dois pra cá", para mim, é mais complexo do que física quântica. Sério. Muitas garotas já tentaram me ensinar, de primas à namoradas, mas nenhuma delas conseguiu o milagre de me fazer dançar ao menos o básico.

   Uma vez, convidei a garota mais gost.., digo, bonita do bairro para dançar um arrasta-pé no palhoção. Ela me olhou dos pés a cabeça, mas parecia surpresa com a minha ousadia (afinal, não sou lá essas coisas) e acabou concordando. Foi um dos maiores vexames da minha vida... acho que até hoje o pé esquerdo da garota não deve ter se recuperado, sem falar que eu quase tropecei em cima dela. Não chegou nem a durar uma música inteira para ela me dispensar. E o pior: depois dessa, fiquei a ver navios, pois qual era a doida que aceitaria dançar comigo? Era melhor ficar só na pamonha, mesmo não fosse a minha vibe.

   No ano seguinte, tentei dar uma de esperto e convidei a garota mais feia do palhoção para dançar. A lógica foi essa: convidar primeiro as mais feias, para tentar aprender o básico sem me preocupar com o vexame, e só depois arriscar vôos mais altos. Mas foi um desastre. Eu não só pisei no pé dela como também, depois de me empolgar um pouco, tentei rodopiá-la e acabei derrubando a besta-fera no chão. Depois dessa, nenhuma garota quis correr o risco...

   É claro que, depois de muitos fracassos, acabei desistindo. Minhas namoradas (falo no plural não por terem sido muitas, e também não por terem sido ao mesmo tempo, mas você deve ter entendido) até tentaram, mas eu sempre dava uma desculpa esfarrapada... Tá, eu até tentei aprender alguma coisa com elas, mas paciência é uma virtude da qual minhas namoradas pareciam jamais ter ouvido falar. Aí, fica difícil...

   Esse ano, protelei o quanto pude, mas chegou uma hora que não teve mais jeito e tive que ir. Chegando lá, começou a chover, e o pessoal correu para se abrigar no palhoção. Mas a chuva estava muito forte e acabou estragando a festa de qualquer jeito; o lugar foi ficando vazio e desanimado. Aproveitei para arrastar o bonde e sugeri que voltássemos para casa.

   No caminho de volta, minha namorada provocou:

  - Você bem que gostou, não é...? Parece até que jogou praga! Poxa, tava tão afim de dançar...
 - Claro que não, meu amor! - me apressei em responder. - Eu queria muito dançar com você, até andei treinando em casa, tô bem melhor sabia? Mas não esquenta, outro dia a gente vem... se você quiser... - disse, só para tentar agradar.

   Mas por dentro, deu vontade mesmo foi de gritar:

  - OBRIGADO, São Pedro! Fico te devendo uma!

(...)

"...Anarriê!"

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Ensaio 1.2 - Resultado


"A dúvida é pior do que a certeza..."

   Ela acordou nervosa. Passou a noite em claro, afligida pelas suspeitas, adormecendo só pela manhã. A cabeça doía um pouco, estava indisposta naquela manhã. Esticou os braços e as pernas, rolou para um lado e continuou deitada na cama. Tentava não pensar, tentava esquecer, tentava pegar no sono, mas quando fechava os olhos sabia que não ia conseguir. A sua cabeça não parava de trabalhar, de imaginar, de antecipar uma realidade dura que estava cada vez mais perto, talvez há alguns cômodos de distância. Sentiu uma dor no baixo-ventre, uma vontade de urinar que, apesar de tentar segurar, ficava mais forte. Teve medo, muito medo. Também pudera, a bula dizia que o teste deveria ser feito, de preferência, "utilizando a primeira urina do período da manhã"...
    Engoliu em seco. Como podia ter vacilado daquela forma? Na hora, nem pensou direito. Mas sabe como é... No calor do momento a gente nunca pensa direito, tudo desaparece numa mistura de sensações... Foi tudo tão bom! Naquela noite tudo conspirou a favor deles. Estavam sozinhos, no maior clima romântico, namorando agarradinhos... não tinha como não rolar, né?
    Sorriu pela primeira vez naquela manhã. Ele era um cara bem legal, bonito e inteligente; se davam muito bem. Todo mundo dizia que eles combinavam. Até o pai dela, que nunca fora muito simpático com os seus amigos (principalmente os homens), falava bem dele. A família toda, aliás, era só elogios...
    Estavam sempre juntos. Ela o amava, tinha certeza. Nunca tinha sentido isso por nenhum outro cara... Se ela realmente estivesse grávida, como seria a reação dele? Será que ele ficaria ao seu lado? Ou será que... ele a abandonaria?
   Os minutos passavam depressa, a vontade de urinar ficava ainda mais forte. Levantou. Tinha escondido o teste na mochila e colocado esta no fundo do guarda-roupa, longe dos olhos curiosos da mãe. Depois de uns minutos, finalmente achou a mochila em meio a bagunça, e catou o teste lá dentro.
    Engoliu em seco. Estava na hora... Seguiu hesitante em direção ao banheiro, as pernas um tanto trêmulas, a cabeça em outro lugar. Sua mãe não estava em casa... bom. Assim, teria mais privacidade, contava com isso. Já dentro do banheiro, abriu a embalagem que continha o bendito teste. Era agora ou nunca, pois já estava no limite e não podia mais segurar a ansiedade.

PROCEDIMENTO

1.  Coletar  a  urina  em  recipiente  limpo, seco  e  sem  conservantes.
2. Transferir a mesma urina para o coletor de plástico que se encontra na embalagem  do teste. Colocar a urina até a medida máxima de  10 ml  do  coletor,  não  encher  o coletor até a borda.
3. Abrir o envelope pela parte picotada e retire  a  Tira-teste,  segurando-a  pela parte superior da tira.
4.  Colocar  a  tira  no  coletor  de  plástico com a urina na posição vertical durante 10 segundos.  Ter cuidado  para  não deixar  ultrapassar  o  limite  indicado pelas setas (ver verso da embalagem).
5.  Coloque  a  tira  sobre  uma  superfície plana e aguarde 5 minutos.
6. Fazer a leitura.

Obs:  Não  considerar  resultados  lidos após 10 minutos.

   Afinal, não era difícil, o maior problema era o nervosismo. Após se certificar de ter feito cada passo do procedimento corretamente, colocou a tira sobre a tampa do vaso sanitário e se sentou ao lado, muito nervosa, o coração sufocado pelo medo e pela ansiedade. Olhava para os azulejos monocromáticos a sua frente, para as teias de aranha na base da pia, mas não olhava de jeito nenhum para o lado, para a tira em cima da privada... "Tomara que dê negativo, tomara que dê negativo, tomara que dê negativo", repetia para si mesma, aflita. Logo, os cinco minutos mais longos da sua vida haviam passado. Estava na hora de fazer a leitura do teste.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Piloto 1.0 - "Ele"



"Todas as histórias tem um começo, mas nem todas elas chegam a ter um fim."



- ... ele acordou.

   A Dra. Duarte esfregou os olhos algumas vezes antes de encarar a sua assistente, que parecia estar muito aflita. Ela endireitou-se na cadeira, sem pressa, e esticou os braços, espreguiçando-se. Segundo depois, conteve um bocejo, diante da ansiedade crescente da subordinada, e ajeitou o cabelo por trás da orelha. O relógio na parede marcava exatamente três horas da manhã. Tinha sido uma madrugada incomum, sem casos graves ou grandes transtornos. Era uma rara oportunidade para se dar um merecido descanso, deixando outros cuidarem das pequenas ocorrências... Há meses a doutora não tinha uma boa noite de sono. "Droga... Será que nunca vão me deixar descansar? Dormir e sonhar um pouco... Nossa! Ahhh... Como sinto saudades dos sonhos picantes das noites de inverno, das fantasias de quando eu era apenas uma doce adolescente... Mas agora, tudo o que me resta é trabalho, preocupações e mais trabalho! Nunca vou conseguir uma vida amorosa estável desse jeito...", pensou, aborrecida, enquanto se distraía com uma caneta esferográfica, passando-a por entre os dedos. Mas acabou derrubando a caneta no chão, devido ao susto provocado pela voz chiada de sua assistente. Nunca iria se acostumar com esses guinchos.

   - Doutora...! Por favor, diga alguma coisa!

  - Dizer o quê?! Laura, eu não disse para não me pertubarem? Ando muito cansada, eu preciso de uma noite de sono, e de preferência sem nenhum incômodo, entendeu?! - respondeu ela, irritada.

   - Mas... D-Dra. Duarte, a senhora ao menos me escutou? - insistiu Laura. Sua voz chiada conseguira se tornar ainda mais aguda. Isso sim era bastante preocupante. Na verdade, era pertubador.

   - É claro... - a doutora escolhia bem as palavras, ainda aborrecida. - Eu a ouvi, mas como estava um pouco cansada, não tenho certeza do que ouvi... poderia repetir, por favor?

   - Doutora, ele acordou!!! - chiou a assistente, que suava e ofegava copiosamente. A Dra. Duarte deu um largo bocejo.

   - Ele quem, criatura...? Isso é motivo para...
   Então, ela finalmente entendeu. Sua boca permaneceu aberta; seus olhos se arregalaram. A assistente se deu por vencida e desabou na cadeira mais próxima, ainda suando muito.

   - O quê?! Não acredito... Laura! Você está mesmo me dizendo que ele acordou?!! Não pode ser... O paciente "especial"? Aquele garoto?

  Laura confirmou com a cabeça. A doutora estava pálida. "Não pode ser verdade. Isso não está acontecendo". Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro da sala. Como queria estar sonhando agora! Como queria que essa chaleira velha não tivesse atrapalhado o seu descanso! "É isso! Isso só pode ser um sonho. Não. É um pesadelo. Logo eu vou acordar, e tudo vai voltar ao normal..." Fechou os olhos e contou até três, desejando com todas as forças...

   Mas, e se não for um pesadelo? E se for a mais pura realidade? Abriu os olhos. Laura ainda estava lá, suando muito, choramingando assustada. "É real... e impossível. Merda, mas que diabos eu devo fazer?!" Essa situação inesperada fugia totalmente dos cálculos. Como única representante do departamento presente, era de sua responsabilidade. Não havia ninguém em quem se apoiar, era a sua cabeça que estava em jogo no momento. "Pense, pense... o que o Dr. Niegson faria?"

   Quando o Dr. Niegson ainda estava a frente do Departamento de Neurologia da Lótus Corp., ele comandava o setor com pulso de ferro. A Dra. Duarte o admirava e o considerava seu mentor, um exemplo a ser seguido. Fora ele quem lhe apontou como sua "sucessora", e isso a envaidecia. "O Doutor não se desesperaria, se estivesse na minha situação. Ele se manteria calmo... Ele agiria. Não se esqueça das instruções, do objetivo principal da experiência... acalme-se!" repetia a Doutora para si mesma. Não podia se deixar levar pelas emoções. "Seja fria. Tem que haver uma explicação, eu só não estou analisando da forma correta..."

   Então, lembrou-se de uma informação muito importante. Depois de se certificar que seus cálculos jamais poderiam estar errados, o Dr. Niegson ordenou-lhe, antes de ser transferido, a comunicar-se diretamente com ele, caso ocorresse algo fora do padrão. "Por menor que seja o fator, não podemos deixar nada alterar o planejamento do experimento. Não se preocupe, Amélia, isso é apenas uma garantia. Se alguma coisa acontecer e você não souber o que fazer, ligue diretamente para esse número. Nós cuidaremos do resto", dissera, com firmeza. Era um número de celular, talvez o seu número pessoal. "Devo ligar?", ponderou a Doutora. Naquela época, sempre desejou ter um motivo qualquer para falar com ele... É interessante ver como as coisas mudam.

   Resolveu ligar. Se alguém podia acalmá-la, era ele. Já se imaginava mais tranquila ao ouvir que estava tudo bem, que ela não precisava se preocupar. Mesmo assim, não conseguiu conter o nervosismo, enquanto esperava que ele atendesse. Não seria melhor desligar? "Laura pode ter se enganado, eu não deveria incomodá-lo sem ter certeza absoluta do fato...". Antes que pudesse averiguar, porém, ouviu a voz dele do outro lado da linha.

- Alô?

   Entre falar e calar-se, a Doutora acabou se engasgando. Só agora percebera que ligara diretamente do seu celular. Agora tinha que ir até o fim.

- Dr. Niegson, d-desculpe incomodá-lo a essa hora...

- Amélia? É você? - perguntou ele. - Eu te disse para ligar apenas se algo importante tivesse ocorrido... o que houve? - o tom de voz dele parecia preocupado, bem diferente do que ela esperava. Ela hesitou. Depois de alguns segundos em silêncio, disse:

- ... ele acordou.

Perfil - Ressuscitando o Blog


"Phoenix Down*, já!"

   Depois de um hiato de três meses, aqui estou eu, numa tentativa épica de ressuscitar o Setor 3 e mantê-lo atualizado mensalmente! Peço desculpas aos meus poucos leitores pelo abandono, mas prometo tratar este espaço com mais zelo daqui em diante.
   Ah, e temos novidades! Estarei postando aqui alguns textos que servirão (ou não) como rascunhos para projetos futuros. E não é só isso. Novos ensaios sairão do forno, assim como novos especiais; continuarei a escrever os prólogos (estagnados desde o distante Prólogo I, lembram?) e outras seções terão mais destaque... Enfim, aguardem os próximos posts. Espero que curtam.

P.s.: Ah, estou estudando criar um novo layout para o Blog... alguma sugestão?

*Para quem não entendeu, é um item medicinal da série FF. Dar mais detalhes estragaria a piada... entende? xD

Imagem do título: Phoenix Down by Athenazero-d1natzh




Creative Commons LicenseSETOR 3 by Bruno Felix Amaral is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil License.



sábado, 1 de janeiro de 2011

Perfil - Ano Novo... no trampo!


"Feliz 2011!"

   Eu sobrevivi ao camarão, à maionese, ao champanhe meia-boca e à reunião de família, mas não pude escapar da sombra nefasta das malditas obrigações do estágio. Aqui estou eu, enfurnado na empresa, trabalhando que nem um condenado, em pleno dia 01, vulgarmente conhecido como Dia da Confraternização Universal e feriado sagrado decretado pela lei e consenso geral! Argh!
   Mas, deixando de lado a minha triste sina, desejo a todos vocês um Feliz 2011!!! Que esse ano seja cheio de fortes emoções e grandes realizações para todos nós. Espero que 2011 seja bem melhor que o ano que passou... Brindemos (nem que seja com chamapanhe vagabunda...) a isso!



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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Perfil - Feliz Pós-Natal!!!


Feliz Pós-Natal!

  Infelizmente, não pude desejar-lhes um Feliz Natal porque felizmente (com o perdão da antítese) estava passando o feriadão longe da web! Comi que nem um ex-presidiário, bebi todas que eu podia (e que não podia, também) e tive uma longa conversa com o vaso. O grande porém é que as festas natalinas se foram rápido demais e já estou aqui, pegando no batente. Mas, como ninguém é de ferro, estou dando uma escapadinha do trabalho para dar uma atualizada no blog. Por sinal, esse mesmo blog que, admito, tenho deixado um pouco de lado nesse segundo semestre... Peço desculpas. Agora ,com a explosão do twitter (oh, vício), que é muito mais prático, acabei por me deixar levar pelas modernidades das redes sociais. Porém, pouco a pouco estarei retornando à pátria para renovar minhas idéias... Por isso, aguardem surpresas! 2011 vem aí e pretendo dar um novo rumo e, porque não, novos ares ao Setor 3.
  Até lá, desejo a todos um Feliz Pós-Natal!!!

Image: Natal_by_MyLittleWorld on Deviantart

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Ensaio 1.1 - Poker entre amigos | Parte 2


"Alea Jacta Est!"

II

   Quatro amigos e um ilustre desconhecido estavam sentados à mesa, disposta irresponsavelmente nos limites de um precipício, prestes a começar uma épica partida de poker. Os quatro se chamavam Desejo, Paixão, Amor e Razão, e se conheciam desde a infância, apesar de já fazer algum tempo desde seu último encontro. Quanto ao ilustre desconhecido, que preferiu permanecer no anonimato, só por brincadeira, parecia a eles um conhecido de longa data, pela grande familiaridade com que se tratavam. Enfim, formalidades à parte, tudo estava pronto para a maior aposta de suas vidas: a disputa por um valioso fragmento de coração. A sorte está lançada!
(...)
   Era uma noite escura e silenciosa. A Razão dava as cartas. Após cada um dos presentes ter recebido cinco cartas, foi definido que haveria uma única rodada de apostas, tendo como valor mínimo apostado o que houvesse de mais valioso para o jogador naquele momento, ou seja, o risco era duplo. Detalhes acertados, foram às cartas.
   O Desejo não gostou do que viu inicialmente, e pediu quatro cartas, dando um largo sorriso em seguida. A Paixão sorriu em deboxe e só pediu uma carta. O Amor, um tanto inseguro, pediu três cartas. A Razão, calculista, pediu duas cartas e triscou os dentes ao ver o resultado. O jogador anônimo também pediu duas, sorrindo, e se serviu de uma porção de amendoins da tigela. Não pareceu esboçar reação diante das novas cartas. Todos prontos, estava na hora de apostar. E blefar.
   - Não sei qual é o jogo de vocês, mas não vão ganhar de mim. - começou o Desejo. - É difícil resistir ao Desejo, quando ele aparece. A tentação é forte, meus caros, e sempre vence,  às vezes sem nenhum esforço, às vezes se utilizando das mais ardilosas armas. As pessoas se deixam levar pelas aparências, não conseguem negar o impulso. E, apesar de sentirem culpados pelas suas fraquezas, sempre se entregam de cabeça ao prazer momentâneo...
   - Meu amigo Desejo, não generalize... Algumas pessoas não se deixam levar pelas aparências. - retrucou a Razão.
  - Será mesmo? Eu aposto que o culto às aparências pregado pelas massas é maior que suas tolas convicções. Prazer, satisfação imediata, beleza, status social... isso é o que move a vontade das pessoas. Lanço a minha aposta: vocês cobrem, ou não?
   - É claro que sim! - respondeu a Paixão, sorrindo maliciosamente. - Não posso negar que o desejo superficial é um demônio poderoso e astuto, que faz com que as pessoas sejam tomadas pelo instinto. Mas o que é o desejo comparado ao irresistível poder da Paixão? Não subestime a vontade que move o coração dos apaixonados! Pessoas mataram e morreram por mim. Quantas histórias não foram escritas, quantas guerras não foram travadas, quantos amantes não verteram seu sangue e eternizaram seus sentimentos em meu nome? Em seu desespero, deixam-se afogar na loucura e aceitam a humilhação só para ter a ilusão de ser correspondidos. Só a Paixão, meus caros, é capaz de destruir a sanidade e entorpecer a razão! Ninguém pode escapar a esse sentimento, que não avisa quando vai fincar raízes em nossos corações. Faço a minha aposta e pergunto: alguém aqui acredita mesmo que pode cobrir esse lance?
   A Razão ergueu as sobrancelhas e deu um largo bocejo, após ouvir o discurso. Depois de alguns segundos sem ninguém ter se pronunciado, a Razão falou:
   - Você disse que a paixão é capaz de entorpecer a razão, e não vou negar esse fato. Mas você é egocêntrico demais para perceber uma coisa: quando esse sentimento se transformar em dor e sofrimento, e nada mais parecer importar, sou eu que mantenho as pessoas vivendo. Quando o coração das pessoas é esmigalhado por aqueles que se diziam ser a sua outra metade, em quem acreditaram e depositaram a sua confiança, as suas emoções, os pequenos e preciosos momentos... quando não resta mais nada além de lembranças e lágrimas, sou eu que junto os pedaços. Eu os aconselho a seguir em frente. Eu os consolo com a razão, e os faço enxergar a realidade por trás de suas escolhas inconsequentes. Eu abro os olhos dos tolos e ceifo o afeto enraizado em seus corações. Por isso, eu sou o mais capaz de ganhar o fragmento; eu, e apenas eu serei capaz de lidar com algo tão valioso, e ao mesmo tempo, tão frágil. Por isso, aumento a aposta: quem aqui é capaz de superar as mágoas e sorrir diante de uma grande decepção?
   Diante desse discurso, todos ficaram em silêncio. O Amor, que até ali tentava tomar iniciativa para dar o seu lance, estava prestes a perder as esperanças. Será que poderia arriscar tanto? Não era por falta de forças, pois isso ele tinha de sobra. Também não era por causa da sorte, pois suas cartas estavam muito boas. O Amor hesitava por um grande motivo: era ele quem mais tinha sofrido a tristeza aterradora da perda, e a do pior tipo, que é a perda de alguém que se ama...
   Era de se esperar que o Desejo apostasse todas as suas volúpias; que a Paixão, no auge de seu discurso, arriscasse a impecabilidade de seu ego; que a Razão, pondo em cheque as apostas dos adversários, colocasse suas convicções à prova de fogo. Mas, e o Amor? O Amor era forte, mas frágil. O Amor era grandioso, mas tímido. O Amor era nobre, mas altruísta. O Amor era doce, mas amargo. O Amor era intenso, mas breve. O Amor era, mas já não era mais...
   Por isso, ao olhar para suas cartas e lembrar dos momentos vivenciados, dos sonhos compartilhados, dos sentimentos dilacerados, baixou sua mão e teve medo. Medo de arriscar tudo e passar novamente pelo melhor e pelo pior que a vida pode oferecer...
   - Eu estou fora... Não posso arriscar tudo de novo. - disse o Amor, quase sem forças.
   O Desejo e a Paixão ficaram um pouco surpresos com essa atitude, mas não fizeram muita questão de encorajar o amigo. A Razão sorriu e comentou que já esperava por isso, afinal, o Amor sempre foi um chorão que vivia a se lamentar dos fracassos da vida em seus ombros. Apenas o recém-chegado, que também parecia surpreso, dava mostras de querer incentivar o amigo. Aconselhava-o, lembrando-o de suas imensas qualidades, mas de nada adiantou, pois quando o medo de amar finca raízes no coração de uma pessoa este se fecha para sempre...
   - Mas e quanto a você? - indagou a Razão ao viajante, calculista como sempre. - Não vai dar o seu lance?
   Ele apenas sorriu, confiante, e acrescentou:
   - No momento não tenho muito a dizer, além de que é um grande prazer estar aqui com todos vocês! Há muito tempo não encontrava pessoas tão interessantes, que pra mim já soam como velhos amigos... Quanto ao jogo, podem ter certeza de que eu estou dentro. Como dizem, eu pago pra ver! Aposto tudo que tenho, além de minha amizade, é claro. Não é muito, mas pode ter um grande valor, se bem cultivada!
   - Muito bem, então. - começou a Razão. - Se todos concordam, vamos às cartas, amigos! O estilo de jogo é o poker aberto tradicional. Vamos seguir a ordem dos apostadores, ok?
  Todos compreenderam a explicação e começaram a ficar tensos, pois logo saberiam quem ganharia o raríssimo pedaço de coração. O Desejo se adiantou e baixou as cartas...
   - Tenho um par de Damas. Acho que ainda estou no jogo! - sorriu ele, apostando no blefe dos outros. Mas a Paixão deu uma larga risada de desdém e baixou as cartas sem pressa, enquanto debochava:
   - Aff! Realmente achou que poderia ganhar com isso aí...? Você sempre foi um grande blefador, um enrolão nato. Mas vou te mostrar o que EU tenho... Full House! Hahaha! Acho que vocês já eram, caros amigos. - e se adiantou para agarrar o prêmio, mas a Razão a interrompeu no ato.
   - Acho que você se enganou. EU ainda não baixei minhas cartas... - e dito isto, mostrou sua mão.
   - Quadra de setes. Pelo visto, meu jogo é mais alto que o seu. Mas é como eu digo: quatro cartas, quatro perdedores... sinto muito, senhores, mas eu não jogo para perder. - sentenciou ele.
   Ver aquilo tirou a Paixão do sério, e por pouco ela não perdeu a cabeça, mas o que fazer, só restava lamentar. Maldita Razão e sua precisão calculista! E pensar que poderia ter ganhado...
   Mas foi o Amor quem mais lamentou. Diante dele, jaziam as suas cartas, que agora, por desistência, eram inúteis. Eis o seu jogo: Quadra de noves. Poderia ter vencido a Razão, se tivesse confiado em si mesmo... mas já era tarde demais.
   Foi quando a Razão ia abocanhar o monte que o último jogador se adiantou e se preparou para mostrar suas cartas. A essa altura, todos tinham se esquecido dele. O que pensar? A Razão provavelmente já tinha ganho mesmo...
   - Eu ainda não mostrei minha mão. - disse ele, sorrindo. - Aqui está: Royal Straight Flush, naipe de copas. Acho que eu venci, né?
   Todos ficaram boquiabertos. Era simplesmente o jogo mais alto. Era quase impossível acreditar que aquele simpático estranho, que tinha sido amigável e solidário com todos, ganhara o precioso fragmento de coração, derrotando o Desejo, a Paixão, a Razão e o Amor numa épica partida de poker...
  - Mas quem diabos é você? - perguntaram todos quase ao mesmo tempo, impressionados com a façanha do viajante.
   - Eu? Pensei que já tinha sido apresentado a vocês há muito tempo! Meu nome é AMIZADE, muito prazer!
   Ele agradeceu a todos e levou consigo o pedacinho de coração que, com toda a certeza, ao seu lado encontraria a verdadeira felicidade.

FIM



(Leia também: Ensaio 1.1 - Poker entre amigos | Parte 1)
http://setor003.blogspot.com/2010/07/ensaio-11-poker-entre-amigos-em.html


Image: Poker by ~Kurobu on Deviantart


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