segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Ensaio 0.5 - Queda



"A loucura é o precipício da angústia."

  "É o fim. Estou subindo mais um lance de escadas, cantarolando baixinho. Ouço "Smells Like Teen Spirit". É extasiante... me ajuda a lembrar dos meus velhos tempos. Posso sentir um aroma entorpecente que faz minha cabeça doer um pouco. Queria saber de onde está vindo... Merda, sinto náuseas, será algum tipo de efeito colateral? Devo ter exagerado na dose habitual de sentimentalismo barato. Dou um sorriso forçado e continuo subindo...
  Agora falta pouco. Quando chego no último degrau, paro. Esfrego os olhos e pressiono as duas mãos contra a cabeça. A loucura atingiu seu ápice. Murmuro meia dúzia de palavrões e abro a única porta. Consegui... Vejo as nuvens, figurantes em um céu poluído. Ouço os sons da metrópole,  o barulho incômodo do trânsito congestionado. Mas que grande merda. Deixo o vento roçar em meu rosto... Suspiro e cruzo finalmente a linha tênue que me leva de volta ao início, preparado para evocar a morte. E de um jeito revoltante, espero.
  Recomeço a cantarolar. A faixa agora é "Rape me". Dou um pequeno sorriso insano. Ando até a extremidade do edifício e, meio desajeitado, subo no parapeito. Meus olhos fitam o asfalto. Esses mesmos olhos que carregaram por tanto tempo o sabor da angústia, famintos por alguma esperança... Esqueça. Cuspo lá embaixo, e a saliva grossa e branca se espalha na calçada. Solto uma gargalhada rouca e xingo alto. Empolgado, me desequilibro um pouco e quase caio. "Ainda não", penso, frustrado.
  Tiro uma pequena garrafa escondida nos trapos sujos que estava vestindo. "Johnnie Walker: Black Label", diz o rótulo. Que bom gosto. Entorno. Não tem mais nada, nem uma gota. Merda... Jogo a garrafa longe, ela cai e se espatifa na entrada de um beco distante, mas não acerta ninguém. Filhos da puta sortudos! Olho pra cima, para o tapete cinzento dos nossos dias. É uma visão triste, de certa forma. Mas não é para os céus que quero olhar... é para a Terra, sim, o mundo! A fruta podre que ainda aparenta estar suculenta. O palco das falsas verdades. Incontáveis. Ah, a Terra! Não poderia considerá-la egoísta por exigir meu corpo? Não importa, isso já não me interessa mais. Mas que viagem louca... É frustrante.
  Eu queria cantarolar mais alguma coisa, antes do último ato. Passo as faixas, uma a uma, procuro algo regional. Uma última homenagem. Que tal, hum... "Anjos Caídos"? Seria adequada ao momento. Deixo rolar. Mas que oportuno! Declamo a letra cantada, e começo a me mover. Pé ante pé, dança o idiota.
  Não chega a terminar. Caio, nem chego a saber o que aconteceu. Talvez tenha escorregado... Sinto um frio na espinha, uma estranha sensação, uma mescla de medo e serenidade... Por quê? Eu escrevi algo uma vez. Todos os pecadores são santos. Todos os pecados foram subjugados. O concreto, frio, duro e desprezível será o meu juíz. E o meu carrasco. Seria o paraíso, na verdade, o inferno?
  O mundo estava moribundo e morreu. Os homens, porém, se renderam à vida. Eles venderam as suas almas. São como vermes se alimentando da carne putrefata de suas convicções. Onde está a esperança? Onde estão os seus sonhos? São palavras vãs sem significado. É melhor viver por nada ou morrer por alguma coisa?
  Na verdade, eu queria gritar a plenos pulmões:

- Eu escolho o recomeço. Eu anuncio o fim. Eu ainda acredito que o mundo possa ser salvo!!"

  Parecia ser uma estrela cadente, mas aquela linha que cruzava a abóbada celeste era apenas um marco... um vínculo entre o princípio e o fim. As pessoas que passavam, ocupadas com seus próprios interesses, não a viram. Ele, porém, a viu, e percebeu que não era tarde demais. "Talvez," pensou ele, e com um leve sorriso no rosto, fecha seus olhos. Dois olhos cinzentos que jamais reabrirão. Agora, é como se tivesse asas para alcançar o infinito. É como se pudesse voar... A hesitação o abandona, e ao rolar da última lágrima, encontra o chão.
  Ouve-se gritos. Ao fundo, uma antiga canção soa em meio a confusão. "What a Wonderful World", anuncia o locutor, "...mais um clássico, aqui na Old Songs...". Irônico. O trânsito continua engarrafado. É quase impossível para a ambulância chegar até o corpo. "É frustrante.", murmura o motorista de um carro funerário, impaciente.

  Não muito longe dali, dois olhos cinzentos se abrem mais uma vez.


** Dedicado ao meu irmão Wolney, que me apresentou ao velho Buck. **


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- Image by C0UG - A falling dream, in Deviantart.


SETOR 3




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