segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Ensaio 0.9 - Indefinível...




"Traduza em uma única palavra..."

  Foram poucas as pessoas que conseguiram passar por tão raro e maravilhoso momento. Foi naquela noite que eu a vi completamente: um anjo de beleza, atitude e personalidade indefiníveis. O seu sorriso dissipava as tormentas e o seu olhar me convidava à eterna felicidade; seus lábios continham o néctar milagroso dos deuses e o seu toque arrebatava o coração dos pecadores. Eu era um pecador.
  Juntos, conversamos sobre o paraíso e o inferno. Vislumbramos a alegria e o sofrimento. Prometemos. Deixamos a amizade preservada em nome da vida. Em nome de algo mais... Sorrimos.
  Um beijo. Como pôde um pecador beijar os lábios encantadores de um anjo? Mas que blasfêmia! Não importa, eu evoco a loucura, eu sou o precussor de um milagre. E o valor de um milagre é... impossível de ser traduzido em uma única palavra.

INDEFINÍVEL

"Como o amor, e outros demônios.
Como a essência da felicidade nos pequenos instantes.
Como o alívio ao perceber que está tudo bem.
Como ter a certeza de que alguém acredita em você.
Como o doce sabor do primeiro beijo.
Como a experiência de vivenciar um final feliz.
Como realizar o desejo mais desesperado de seu coração.
Como jamais despertar de um sonho imensuravelmente bom..."

...

  Abro os olhos. Estou sentado numa das muitas carteiras da sala 308. O que houve? Teria dormido? Eu estava muito cansado... Cansado de tudo. Mas de repente, naquele momento sublime...
  Olho para os lados, para todos os lados ao meu redor. Eu vejo as pessoas, aquelas mesmas pessoas em tons de cinza. Eu vejo um cenário em preto e branco, tosco e sem vida. Mas não as cores primordiais... Onde está o anjo que me salvou da beira do abismo? Eu a procuro com os olhos, mas já não posso ver... Um único e terrível pensamento me faz entrar em desespero, mas eu não quero acreditar. Teria sido apenas um sonho? Um sonho, apenas...
...

  Uma carteira está vazia. Todos parecem me ignorar, e quando finalmente me escutam, me chamam de louco. "Um anjo?"- me dizem. "Anjos não existem. Jamais a vi." Não, não me digam que ela nunca existiu... por favor. Saio em disparada, atravesso os corredores, perco as esperanças. Eu me lembro... foi tudo real. Tem que ter acontecido. Tem que ser verdade! Será que estou sonhando que ela nunca existiu? Ou será ... será que eu estava sonhando que ela um dia existira? O que é sonho e o que é real?
  Eu não consigo escapar. Tons de cinza sobre um fundo preto e branco... É o inferno. O verdadeiro inferno é viver em um mundo onde você não possa existir...
  Sigo, sem fôlego, e chego na praça. As estátuas de mármore me encaram. Elas parecem saber de alguma coisa... "Por que sonhar? A sua sina é a morte. Os seus pés têm de tocar no chão frio da realidade. Anjos não dizem "eu te amo". Momentos como aquele são meras ilusões. Os sonhos deixarão de ser sonhos quando se tornarem realidade, e essa mesma realidade é o verdadeiro juíz, e também o carrasco dos seus sentimentos. Desista!"
  Não. O ponto de ônibus, a minha última parada. Não a vejo. Não há ninguém. Tiro o celular do bolso, procuro o número dela na lista de contatos. Inexistente. Por quê? Por que acreditar num sonho, mesmo que ele se assemelhe à realidade? O pecador está fadado ao sofrimento. Então, o pecador se agarra ao amor. Sem saber... sem saber que o amor não passa de uma quimera criada para tranquilizar os homens. Para resgatá-los do desespero. Mas, no fundo, é apenas uma segurança invisível...
  Eu lembro dos nossos poucos momentos juntos. Cada um deles passa pela minha mente neste instante. Eu os vivencio mais uma vez. Uma lágrima escapa e timidamente chega ao chão. Droga! Não chore... não devo chorar. Essa é a vida.
  A lembrança de um velho amigo se aproxima. É apenas uma lembrança... de algo que ouvi há muito tempo:
  "Vale a pena amar? Vale a pena gostar de alguém?"
  O dilema do ouriço. Era uma fábula interessante... Eu sempre tive dificuldade em me aproximar das outras pessoas. Medo de me apegar a elas e acabar pagando o preço. Porque eu sabia... pior do que viver a dor de se estar sozinho é viver a dor de pagar o preço... ao se importar com alguém.
  O dilema do ouriço. Quando dois ouriços decidem ficar juntos, eles têm de suportar a dor causada pelos próprios espinhos. Eis o dilema - o que é mais importante: a necessidade de ficarem juntos ou o medo de ambos ao sofrer a dor alucinante provocada pelos seus espinhos? Assim também são os seres humanos...
  É, eu me lembro. Mas... Mesmo que tenha sido apenas um sonho... mesmo que jamais tenha acontecido de verdade... Eu sinto que tudo valeu a pena. Porque tudo vale a pena por você...
  Fecho os olhos e me imagino mais uma vez do outro lado...

...

  Abro os olhos. Estou sentado num banco de praça, é noite, um anjo me abraça suavemente, sussurando palavras gentis em meu ouvido. Então...
  - Você adormeceu por um instante... estava muito cansado. Mas eu cuidei de você...
  Eu a abraço forte e beijo os seus lábios. Então... não fora um sonho. Ou fora? Uma sensação indescritível invade o meu peito, e sinto que não importa. Apenas viva o momento. Sim, vale a pena gostar de alguém... Eu jamais estarei sozinho. Você me ensinou isso... me ensinou algo muito importante, e eu serei eternamente grato. Mesmo que um dia, nossos caminhos se separem... eu agradeço por ter surgido em minha vida! Por ter surgido em meus sonhos...
  - Você sabia que os anjos não dizem "eu te amo"? - perguntei, sorrindo. - Porque não existem palavras para descrever um sentimento como o amor. Em vez disso, eles apenas vivem plenamente o indefinível...
  Ela sorriu. Então, falou docemente, estreitando o olhar enigmático e sedutor:
  - Traduza em uma única palavra o que aconteceu hoje...
  Eu a beijei.

**Dedicado a um anjo de beleza, atitude e personalidade indefiníveis. Obrigado por existir, Dri.**

(Next: Ensaio 0.1 - Bonsai)

- Image Credits: Wandering Angel by Kencho, on Deviantart. -

 

domingo, 22 de novembro de 2009

Ensaio 0.8 - Guloseimas





  - Você é um chato, um grosso, ignorante e idiota. - declarou ela, da forma mais gentil que pode encontrar, o que não necessariamente significa uma boa coisa. Parecia estar realmente estressada naquela noite, e para piorar toda a situação, havia sido provocada de uma forma revoltante. O estranho, aquele desgraçado petulante, tinha ousado roubar a sua deliciosa surpresa de uva!
  - Calma, guria. Muita calma nessa hora... -  e comeu o doce numa bocada só. - Por que você não toma um pouco de Coca-cola? Quem sabe assim você... - ia dizendo ele, oferecendo a latinha do precioso líquido, como quem sela a paz, mas foi bruscamente interrompido por um berro.
  - Mas essa coca era minha!!! É minha! E é lógico que EU vou bêbe-la, sozinha! Me dá isso aqui! - e tomou a latinha das mãos do coitado. Que violência! Ele sorriu, irônico.
  - Bem que me falaram que "nunca se deve fazer cócegas num dragão adormecido..." - murmurou, mas dissera a coisa errada.
  - O QUE FOI QUE VOCÊ DISSE?! TÁ DOIDO, É?!
  - ...
  Ela soltava fumaça pelas narinas, estava vermelha como se o sangue estivesse fervilhando, o olhar brutalmente assassino. O indivíduo percebeu o perigo eminente, e foi tratando de mudar logo o discurso, assumindo um tom condescendente:
  - Olha, guria, veja pelo lado bom. Ultimamente, você tem comido muitas besteiras e se continuar assim, vai acabar ficando, digamos, "fofinha"... assim, considere o que fiz como uma ajudinha...
  - PAF!
(...)

  A garota das guloseimas olhava através da janela. Observava o mundo. As pessoas, jovens, maduras, caretas, estilosas, descoladas, certinhas, puritanas, pervertidas, porra-loucas, intelectuais e bêbados, de todas as tribos, passavam lá embaixo. Era um amálgama de personalidades diversas e pensamentos distintos, definido simplesmente (tanto pelos estúpidos quanto pelos especialistas) como FACULDADE. Ela sorriu para si mesma. Tinha conseguido.
  O mesmo "chato" de antes se aproximou cautelosamente dela, que ainda observava o movimento lá fora, distraída. Ele se acomodou no suporte de braço da carteira, de modo que mesmo sentado pudesse ver através da janela. Ela notou a presença dele e deu um muxoxo de impaciência.
  - Lá vem...
  Ele sorriu, em resposta.
  - Sabe, se você olhar atentamente, ainda é possível ver a marca que a sua mão fez na minha cara... Não precisava ter ido tão longe.
  Ela deu uma risadinha maldosa, e depois sorriu. Ainda parecia um pouco assustadora.
  - Você mereceu. Bem feito!
  Talvez tivesse razão.
  - Tudo bem... me desculpe então. Aceite isso, como uma compensação pelos meus comentários... - e, retirando um bombom de chocolate do bolso, ofereceu a ela. Era um Sonho de Valsa.
  - Olha só, o grosso sendo gentil... que milagre.
  - É sério, foi mal.
  - É, foi mal meeeesmo. Mas eu não posso aceitar.
  - Por quê?
  - Não como chocolate. - Ela tinha um bom motivo para recusar. E quanto à promessa? Um Sonho de Valsa é tentador demais...
  - Pode aceitar, não está envenenado. Ou será que você levou a sério o que eu disse a respeito de "ficar fofinha"? Tá de regime agora, é?
  - Calado. Pare de falar que eu vou ficar gorda.
  - Tá bom...
  - Olha, é uma promessa, tá legal? Eu fiz uma promessa e alcancei a graça. Não vou comer chocolate nunca mais!
  - Sei... uma promessa, é?
  - É.
  - Tudo bem, se é importante pra você, pensarei em outra coisa.
  Ela já tinha ficado um pouco estressada, ponderou ele. Então, sem chocolates...
  - ...
  - Que foi? - perguntou ela.
  - É que faz sentido. Como não pode comer chocolate, exagera em todo o resto, não é? Hehehe!
  - PAF!
  - ...
(...)
  Outra noite. Hoje, ela aparenta estar um pouco mais amistosa. Tanto que ele achou seguro se aproximar.
  - Está de bom humor hoje, é?
  - É. - retrucou ela, rapidamente. - Mas não tão bom assim...
  Risos. A galera se aproximou. Todos conversavam sobre bobagens e riam facilmente. O clima era bastante agradável. Ele até chegou a poupar a surpresa de uva dela dessa vez...
  - Olha, eu vou te escrever um conto.
  - Hã?
  - É, um conto. Como não aceitou o chocolate, foi a única coisa na qual eu pensei. Não sou muito bom, mas vá lá. Você não fez nenhuma promessa quanto a isso, fez?
  - Não. - ela riu. - Tudo bem, aceitarei o conto. Vou cobrar, viu!
  - Tudo bem.
  Sabe, até que ele não era tão chato assim?
  - Hehehe. É estranho não ser esmurrado, estapeado ou esganado por você. Parabéns! Está deixando de ser aquela histérica, chata, ignorante, neurótica, estressada, enjoada, louca e assustadora...
  - PAF!
  (...)

  Uma manhã. Ela estava online, logada no Twitter. Ele também. Essa é mais uma daquelas coisas que acontecem no Twitter... O que você está fazendo?
  "Terminando o trabalho de economia. Agora só falta o fichamento do texto de filosofia..." - "twittou" ela.
  "@Guloseima Que fichamento é esse? Tou por fora! ^^" - "twittou" ele.
  "@Chato3 Devia prestar atenção na aula, pra variar! =P" - "twittou" ela em resposta.
  "@Guloseima Nossa, você realmente me ama." - "twittou" ele, em réplica.
  "@Chato3 kkkkkkkkkkkkkkkkkk Nem morta!" - "twittou" ela, e, tréplica.
  É, tem razão. Mas ela é bem interessante... Devia ser um pouco mais amigável. Mas e o fichamento? Que preguiça...
 
  Já ela, pensava na própria vida. Nas coisas que tinham acontecido até agora, tudo o que já vivenciara. Era estranho. Era algo que tinha ouvido há muito tempo: a vida é como uma peça de teatro. Por isso, cante, grite, chore, ame, dance e viva antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos. É como uma peça de teatro que não nos permite ensaios...
  Ela fechou os olhos. A vida se arrastava, dia após dia. Era preciso ser louco para se jogar de cabeça, sem medo de se esborrachar no chão. Feche os olhos, se jogue! É difícil. Ela pensou em Carpe Diem. Viva cada segundo como se fosse o último... Viva o hoje, sem pensar no amanhã. Cada momento era único.
 
  "Quando eu fecho os olhos, eu vejo a vida em slides." - "twittou" ela.
  Alguns minutos sem novos tweets. De repente:
  "@Guloseima Quando eu fecho os olhos, eu não vejo nada. Deve ser porque estou de olhos fechados..." - "twittou" ele.
  Apenas uma palavra surgiu na mente dela, murmurada naquele exato momento:
  - Ridículo.
(...)
  Naquele mesmo dia, à noite.
  - PAF!
  - Por que você me bateu? - indagou ele, massageando a costela.
  - Você é um ridículo.
(...)

  Mas uma noite, dias depois. Novamente, ela observava o mundo através da janela. O vai-e-vem das pessoas lá embaixo...
  - Lá no interior onde você mora, não tem TV não? - perguntou ele de longe, de surpresa. Ela fez mira e jogou a latinha de Coca-Cola com toda a força, mas errou. Ele se aproximou, agora cauteloso.
  - Fiquei sabendo que amanhã é seu aniversário. Te entrego o conto amanhã!
  - Como quiser. - ela voltou a observar os passantes, devorando um pacote de Rufles.
  - Nossa, você realmente gosta de se entupir com essas bobagens. Só nos últimos trinta minutos você comeu um pedaço de torta, uma surpresa de uva e tomou uma latinha de coca. Além da batatinha... O que mais me impressiona é que você não engorda nem um pouco. Pelo contrário, parece até que perdeu peso.
  - Quer apanhar, é? - ameaçou ela, estreitando os olhos. - Meu corpo é lindo, saudável e perfeito.
  - Sei... se você diz com tanta convicção...
  - CLING!
  - Você... grampeou meu dedo...
  - Devia era grampear sua língua!
  (...)
  O dia do aniversário. Ou melhor, a noite. Comemoração, cumprimentos, celebração. Abraços e sorrisos. Boas gargalhadas. Então, era hora de cantar "Parabéns para você" Não importa se inúmeros desconhecidos também estejam por perto...

  "Parabéns para você. Nesta data querida.
   Muitas felicidades, muitos anos de vida..."

  - Que mico... - ela deu um sorriso forçado, envergonhada.

"Haha! Huhu! Ô guria eu vou comer o seu bolo!
  Haha! Huhu! Ô guria eu vou comer o seu bolo!"

  Adivinha quem puxou essa? Ele mesmo...
  - O primeiro pedaço não é seu. - taxou ela, categoricamente.

(...)

  Hora dos presentes. Ele foi o último. Segurava umas folhas de papel datilografadas, e se aproximou confiante, esboçando um sorriso.
  - Eis o conto. Espero que goste.
  - Eu vou ler.  Mas se for mais uma palhaçada sua...
  - É a história da sua vida.
  - PAF!
  - Não precisava ter feito isso. Eu não quis dizer nada. Ah, é claro que não é a história da sua vida toda, é apenas um ensaio sobre nossas brigas e discussões. É cômico e divertido.
  Ela riu. Por essa ela não esperava...
  - Quer dizer que eu sou a personagem principal?
  - É.
  - Hum... você é mesmo um idiota. Por que escreveu sobre isso?
  - O porquê não importa... Saiba apenas que a vida é como uma peça de teatro que não nos permite ensaios. Antes que as cortinas se fechem, cante, grite, chore, ame e viva intensamente. Se jogue de cabeça, sem medo de cair. Feche os olhos e vivencie cada slide, como você mesma disse. Antes que a peça acabe sem aplausos... Mas se por acaso, isso acontecer, saiba que os meus aplausos você sempre terá.
  Ela ficou sem palavras. Não faz sentido. Por que ele se importa?
  - Por que escreveu o conto?
  - Porque eu tenho certeza que você é muito mais do que deixa transparecer. Achei que o conto poderia te mostrar isso...
  - Como assim?
  - Aquela pessoa rude e esquentada é apenas uma armadura que esconde a garota doce que ainda acredita no melhor da vida. Essa garota doce é você... tão doce quanto as guloseimas que come. É assim que eu te vejo.
  Ela o abraçou. Que milagre.
  - Obrigada. Como você consegue me aturar, hein?
  - Isso é um privilégio de poucos... - respondeu o escritor.
  Ela sorriu mais uma vez, e examinou as páginas datilografadas. Reparou no título.
  - Mais uma pergunta, seu ridículo e imprevisível... - e mostrou o título do conto.

GULOSEIMAS
  - Hum?
  - Esse título, por que você o escolheu? "Guloseimas"... Tinha que ter um tom irônico.
  - Eu pensei que se você consegue digerir todas aquelas porcarias, conseguiria digerir o que escrevi nesse conto, se ao menos tivesse um nome adocicado. Hehehe.
  - Paf!
  - Engraçado, esse tabefe não foi tão forte quanto eu esperava...
  - Você também não era tão idiota quanto eu esperava...
  - De qualquer forma, feliz aniversário!
  - Obrigada!

  E a festa teria continuado tranquila se não fosse pelo desastre da Fanta Uva, pela falta de Coca-Cola e pela falta de tato dele, ao fazer mais um comentário esdrúxulo...

**Dedico este à aniversariante, a doce garota por trás da armadura. Feliz aniversário, Arytãnia! 21/11/09**

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- Imagem manipulada; - créditos:  Rena Yuki, in Deviantart; -


quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ensaio 0.7 - Sob o Guarda-chuva...




Uma noite de chuva.

Foi numa noite qualquer, num período qualquer.
Chovia. Chovia forte. Chovia muito.
Dois estranhos. Sim, eles se conheciam. Eram estranhos apenas para os outros...
Um coadjuvante. Ele não será citado aqui.
Eram apenas dois estranhos sob um pequeno guarda-chuva.
SIm. Havia um guarda-chuva. Era pequeno, mal dava para os dois.
Um garoto e uma garota. Dois jovens estranhos.
Estava frio, estava escuro. Estava molhado também.
Eram apenas dois estranhos sob um pequeno guarda-chuva, numa noite chuvosa.
Foi uma noite inesquecível...
Voltavam para casa. Ele e ela. Ele a levava para casa.
Juntos.
Abraçados e espremidos sob aquele pequeno guarda-chuva, menor que o juízo dele...
Estava frio, estava escuro. Mas quem se importa?
Estava molhado também. Úmido. Mas e daí?
Era perfeito.
Juntos, seguiam em frente.
Ela contava histórias engraçadas. Sorria. Implicava com ele.
Ele fazia comentários idiotas. Ria. Implicava com ela.
Se envolviam  e se inebriavam.
A felicidade é um pouco estúpida. Mas está nos pequenos instantes...
Juntos, seguiam em frente.
A certa altura do percurso, ela reclamou de cansaço.
Seria verdade? Seria um motivo? Seria uma desculpa?
Ele se ofereceu para carregá-la nos braços.
Sob um pequeno guarda-chuva essas coisas acontecem.
Ela riu, ele riu, eles riram.
Ele sabia que não era forte o bastante.
Ela sabia que ele não conseguiria ir muito longe.
Ele a tomou nos braços e seguiram juntos.
Eram apenas dois estranhos sob um pequeno guarda-chuva, numa noite chuvosa.
Era uma situação estranha.
Ela continuou implicando e sorrindo. Era uma combinação incomum...
Ele continuava sorrindo e implicando. Não era de todo inédito...
A chuva continuava a cair.
Por algumas quadras, ele conseguiu. Mas...
A certa altura do percurso, ele não aguentava mais.
Ela percebeu, e falou que já não estava mais cansada.
Ele prometeu que um dia a carregaria nos braços, por todo o caminho.
Ela assentiu, sorrindo, e disse que jamais se esqueceria da promessa.
Era engraçado. Era estranho. Era aceitável. Era perfeito.
Risos.
Juntos, seguiam em frente.
Ele a olhava com outros olhos.
Ela o olhava com os mesmos olhos que o fizeram olhá-la daquele jeito.
Eram apenas dois estranhos sob um pequeno guarda-chuva.
E um coadjuvante encharcado e aborrecido. Passemos.

Aos poucos, a chuva abrandava.

Eis o fim do percurso.
Eles se olharam. Era a hora da despedida. O desfecho.
Ela sabia de alguma coisa.
Ele não sabia de nada.
Um abraço apertado. Um beijo simplório. Se despediram.
Ela se foi. Atravessou a rua. Os caminhos se separam.
Ele a observou partir.
Agora ele sabia.

O que importava de verdade era o jeito como ela olhava para ele, naquela noite chuvosa.
E como ele olhou para ela.
A chuva também se fora.
Era hora dele ir, também.
Eram apenas dois estranhos seguindo para casa.
E uma estranha sensação...
Adeus.




 **Dedicado à garota daquela noite inesquecível. A minha adorável (e intragável) Uxa.**


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- Image by Fbuk; Umbrella figure, in Deviantart. -












quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Ensaio 0.6 - Admiração


  

  A garotinha estava triste apesar de tudo. Entrou no quarto, trancou a porta, se jogou na cama e começou a chorar, apertando o travesseiro com muita força.
  Depois de muitas lágrimas e suspiros, ela finalmente reparou num estranho envelope em cima do criado-mudo. Quem será que o deixara ali? Ela não se lembrava de ter visto aquilo pela manhã. Seria uma brincadeira do irmão? Ou será que seria algum pertence dele, algo secreto? Ela já não o tinha proibido de invadir seu quarto?!
  Curiosa, levantou-se e pegou o envelope. Havia uma única palavra escrita em letras maiúsculas e um tanto inclinadas para a direita:
  ADMIRAÇÃO.

  - Hmmm... Deve ser uma carta de amor! Hihihi... quem se daria o trabalho de escrever uma cartinha de amor pra ele? - murmurou ela, um tanto maldosa.

  Ficara ainda mais curiosa. Já estava pensando na cara do seu irmão caçula quando soubesse que tinha esquecido o envelope no quarto e ela o tinha lido... Abriu o envelope, encontrando um papel dobrado em quatro partes. Haviam muitas palavras escritas no mesmo estilo inclinado, mas dessa vez as letras eram bem miúdas. Parecia ser uma poesia:


Admiro o seu jeito de ser.
Mesmo que já não seja mais.
Admiro o seu jeito de sorrir.
Mesmo que não queira mostrar.
Admiro o seu jeito de falar.
Mesmo que diga "adeus".
Admiro o seu jeito de ouvir.
Mesmo que já não me ouça mais.
Admiro o seu jeito de enxergar.
Mesmo que não me veja como eu sou.
Admiro o seu jeito de pensar.
Mesmo que eu não possa entender.
Admiro o seu jeito de agir.
Mesmo que lhe falte a iniciativa.
Admiro o seu jeito de gostar.
Mesmo que não seja igual ao meu.
Admiro o seu jeito de viver.
Mesmo que não viva por você.
Admiro o seu jeito de sonhar.
Mesmo que prefira a realidade.
Admiro o seu jeito de sentir.
Mesmo que se diga insensível.
Admiro o seu jeito de odiar.
Mesmo que seja a mim.
Admiro o seu jeito de amar.
Mesmo que não seja por mim.
Admiro o seu jeito de agradecer.
Mesmo que não haja um motivo.
Admiro o seu jeito de acreditar.
Mesmo que seja a única a crer em mim.
Admiro-te por te admirar.
E admiro-te por existir.
Admirável pessoa tão importante pra mim. 

- Para uma garota admirável. 


    Será que a carta era para ela? Só podia ter sido escrita para ela... aquela não era a letra do seu irmão. "Para uma garota admirável.", dizia o poema. Sem perceber, a tristeza tinha ido embora. A garotinha sorriu, e logo se perguntou: quem teria escrito aquilo?

** Dedico este a pequena e admirável Anny. **

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- Image by EvanWilman; A love letter, in Deviantart. -