quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ensaio 1.1 - Poker entre amigos | Parte 1


"A sorte está lançada!"

I

   Era uma noite escura e silenciosa. Sentados à mesa - disposta irresponsavelmente nos limites de um precipício - um grupo de amigos estava reunido para uma épica partida de poker. Eram amigos de infância muito queridos, do tipo que raramente se vê hoje em dia, mas já fazia um bom tempo desde seu último encontro. Eram quatro personalidades fortes e distintas, cada qual com seus trejeitos e manias, e se chamavam Desejo, Paixão, Amor e Razão.
   Geralmente, dentre todas as coisas que costumavam aprontar juntos, as partidas de poker eram das mais hilárias, pois sempre acabavam em provocações e muita confusão. O Amor sempre insistia em tentar acalmar os ânimos e acabava sendo vítima de piadas de mau gosto; a Razão não poupava os comentários ácidos nas horas mais cruciais; a Paixão sempre conseguia fazer um assunto qualquer terminar em uma pomposa referência a si mesma; e o Desejo, que era todo gracejos e indiretas, nunca deixava os petiscos dando sopa por muito tempo. Mas, apesar de um ou outro desentendimento, sabe como são os amigos; no final das contas, sempre davam o braço a torcer e tudo acabava em uma grande algazarra.
   Esta noite, porém, estavam anormalmente tensos. Hoje havia algo muito mais importante em jogo, pois não se tratava de uma simples reunião para matar as saudades. A partida daquela noite era decisiva e visava nada mais nada menos que um raro fragmento de coração, de valor inestimável.
   Depois dos cumprimentos, abraços e tapinhas nas costas, já acomodados em seus respectivos lugares, avistaram ao longe um andarilho, coberto da cabeça aos pés por um sobretudo negro. Era um estranho aos olhos dos quatro, e parecia estar muito cansado do longo caminho que percorrera. Ao se aproximar o suficiente, ele saudou o grupo com um simpático aceno de mão e um sorriso, que demorou alguns segundos para ser correspondido.
   - Boa noite, cavalheiros! - disse ele, amigavelmente. - Vejo que os senhores estão prestes a começar um joguinho! Hahaha! Será que eu poderia me juntar a vocês? Estou bastante cansado... um pouco de descanso e um tanto de diversão entre amigos podem renovar um homem! O que me dizem?
   Surpresos, os quatro simplesmente não sabiam o que responder. Quem era esse estranho falante e por que ele havia surgido do nada a essa hora da noite, justamente no local onde haviam marcado a partida? Não sabiam dizer. Era uma baita de uma coincidência, impossível ser mera obra do acaso. Alguém deve tê-lo convidado... Mas quem? Isso despertou uma pequena desconfiança, afinal, foi combinado que estariam sozinhos aquela noite. Planejaram uma disputa fechada, ou seja, sem estranhos. Teria sido o Amor a convidá-lo, não podendo negar um pedido sincero sob certa insistência? Ou teria sido a Razão, maquinando algum truque para garantir a vitória? O Desejo não poderia ter pensado em algo tão elaborado, pois era pura impulsividade... mas, será que, justamente por isso, teria dado com a língua nos dentes? E quanto a Paixão, teria sido ela a responsável? Não, seu ego era grande demais para aceitar a ajuda de qualquer um... Ou será que não?
   Temendo até onde essa dúvida poderia chegar, os quatro concordaram em silêncio em pensar com cuidado sobre a entrada do estranho no jogo, permitindo uma maior aproximação do mesmo. Mas é claro, todos mantendo os olhos bem abertos para eventuais truques... Antes de mais nada, é preciso salientar aqui que devido ao altíssimo valor do prêmio em questão, o grupo estava alheio ao sentimento mútuo de amizade e desejava apenas ganhar a disputa, custe o que custar. Mas não devemos julgá-los por isso...
   O sujeito tirou o sobretudo e logo ficou à vontade. Em menos de meio minuto, já estava fazendo piadas e contando histórias bizarras sobre as suas viagens pelo mundo. Era tão simpático e sorridente que logo a descofiança e a tensão transformaram-se em uma divertida algazarra. E foi assim até o momento infeliz em que a Razão tomou o baralho em mãos e começou a embaralhá-lo, anunciando o início da partida decisiva. Todos engoliram em seco e o silêncio pairou mais uma vez no local.
   - O que estão apostando? - perguntou o viajante.
   Depois de uma pausa significativa, a Razão respondeu, impaciente:
   - Um item raro e extremamente valioso: um fragmento de coração. Aquele mesmo, que está no centro da mesa. É algo único no mundo, por isso, se quiser entrar no jogo, terá que apostar alto... se puder, é claro. - acrescentou, secamente.
   - Um fragmento de coração!? Nossa, realmente, isso é algo muito valioso! Não tem preço, com certeza não tem preço... - comentou o sujeito, bastante surpreso. - Por um prêmio desses, qualquer um daria até mesmo a própria vida, não acham? Impressionante... Agora que soube disso, dá mais vontade ainda de jogar com vocês. Se me permitirem, eu gostaria de entrar nessa disputa...
   Essa era a deixa que estavam esperando. Queriam saber o que cada um dos outros realmente pensava a respeito da situação. Antes que a Razão pudesse responder, o Desejo logo interviu:
   - Por mim ele pode jogar. Todos nós estamos apostando tudo nesse jogo; se ele quiser arriscar, por que não?
   - É verdade... eu também não me oponho. Fica até mais emocionante, afinal, é mais uma chance de tentarem me vencer nessa... - desdenhou a Paixão, rindo.
   A Razão olhou interrogativamente para o Amor, que apenas disse, timidamente:
   - Eu não vejo por que não... 
   Como a decisão de todos foi positiva, a Razão declarou sem demora:
  - Ok. Joguemos, então!

(...)

  Continua!

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Image: Poker by ~Kurobu on Deviantart



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