quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Ensaio 1.1 - Poker entre amigos | Parte 2


"Alea Jacta Est!"

II

   Quatro amigos e um ilustre desconhecido estavam sentados à mesa, disposta irresponsavelmente nos limites de um precipício, prestes a começar uma épica partida de poker. Os quatro se chamavam Desejo, Paixão, Amor e Razão, e se conheciam desde a infância, apesar de já fazer algum tempo desde seu último encontro. Quanto ao ilustre desconhecido, que preferiu permanecer no anonimato, só por brincadeira, parecia a eles um conhecido de longa data, pela grande familiaridade com que se tratavam. Enfim, formalidades à parte, tudo estava pronto para a maior aposta de suas vidas: a disputa por um valioso fragmento de coração. A sorte está lançada!
(...)
   Era uma noite escura e silenciosa. A Razão dava as cartas. Após cada um dos presentes ter recebido cinco cartas, foi definido que haveria uma única rodada de apostas, tendo como valor mínimo apostado o que houvesse de mais valioso para o jogador naquele momento, ou seja, o risco era duplo. Detalhes acertados, foram às cartas.
   O Desejo não gostou do que viu inicialmente, e pediu quatro cartas, dando um largo sorriso em seguida. A Paixão sorriu em deboxe e só pediu uma carta. O Amor, um tanto inseguro, pediu três cartas. A Razão, calculista, pediu duas cartas e triscou os dentes ao ver o resultado. O jogador anônimo também pediu duas, sorrindo, e se serviu de uma porção de amendoins da tigela. Não pareceu esboçar reação diante das novas cartas. Todos prontos, estava na hora de apostar. E blefar.
   - Não sei qual é o jogo de vocês, mas não vão ganhar de mim. - começou o Desejo. - É difícil resistir ao Desejo, quando ele aparece. A tentação é forte, meus caros, e sempre vence,  às vezes sem nenhum esforço, às vezes se utilizando das mais ardilosas armas. As pessoas se deixam levar pelas aparências, não conseguem negar o impulso. E, apesar de sentirem culpados pelas suas fraquezas, sempre se entregam de cabeça ao prazer momentâneo...
   - Meu amigo Desejo, não generalize... Algumas pessoas não se deixam levar pelas aparências. - retrucou a Razão.
  - Será mesmo? Eu aposto que o culto às aparências pregado pelas massas é maior que suas tolas convicções. Prazer, satisfação imediata, beleza, status social... isso é o que move a vontade das pessoas. Lanço a minha aposta: vocês cobrem, ou não?
   - É claro que sim! - respondeu a Paixão, sorrindo maliciosamente. - Não posso negar que o desejo superficial é um demônio poderoso e astuto, que faz com que as pessoas sejam tomadas pelo instinto. Mas o que é o desejo comparado ao irresistível poder da Paixão? Não subestime a vontade que move o coração dos apaixonados! Pessoas mataram e morreram por mim. Quantas histórias não foram escritas, quantas guerras não foram travadas, quantos amantes não verteram seu sangue e eternizaram seus sentimentos em meu nome? Em seu desespero, deixam-se afogar na loucura e aceitam a humilhação só para ter a ilusão de ser correspondidos. Só a Paixão, meus caros, é capaz de destruir a sanidade e entorpecer a razão! Ninguém pode escapar a esse sentimento, que não avisa quando vai fincar raízes em nossos corações. Faço a minha aposta e pergunto: alguém aqui acredita mesmo que pode cobrir esse lance?
   A Razão ergueu as sobrancelhas e deu um largo bocejo, após ouvir o discurso. Depois de alguns segundos sem ninguém ter se pronunciado, a Razão falou:
   - Você disse que a paixão é capaz de entorpecer a razão, e não vou negar esse fato. Mas você é egocêntrico demais para perceber uma coisa: quando esse sentimento se transformar em dor e sofrimento, e nada mais parecer importar, sou eu que mantenho as pessoas vivendo. Quando o coração das pessoas é esmigalhado por aqueles que se diziam ser a sua outra metade, em quem acreditaram e depositaram a sua confiança, as suas emoções, os pequenos e preciosos momentos... quando não resta mais nada além de lembranças e lágrimas, sou eu que junto os pedaços. Eu os aconselho a seguir em frente. Eu os consolo com a razão, e os faço enxergar a realidade por trás de suas escolhas inconsequentes. Eu abro os olhos dos tolos e ceifo o afeto enraizado em seus corações. Por isso, eu sou o mais capaz de ganhar o fragmento; eu, e apenas eu serei capaz de lidar com algo tão valioso, e ao mesmo tempo, tão frágil. Por isso, aumento a aposta: quem aqui é capaz de superar as mágoas e sorrir diante de uma grande decepção?
   Diante desse discurso, todos ficaram em silêncio. O Amor, que até ali tentava tomar iniciativa para dar o seu lance, estava prestes a perder as esperanças. Será que poderia arriscar tanto? Não era por falta de forças, pois isso ele tinha de sobra. Também não era por causa da sorte, pois suas cartas estavam muito boas. O Amor hesitava por um grande motivo: era ele quem mais tinha sofrido a tristeza aterradora da perda, e a do pior tipo, que é a perda de alguém que se ama...
   Era de se esperar que o Desejo apostasse todas as suas volúpias; que a Paixão, no auge de seu discurso, arriscasse a impecabilidade de seu ego; que a Razão, pondo em cheque as apostas dos adversários, colocasse suas convicções à prova de fogo. Mas, e o Amor? O Amor era forte, mas frágil. O Amor era grandioso, mas tímido. O Amor era nobre, mas altruísta. O Amor era doce, mas amargo. O Amor era intenso, mas breve. O Amor era, mas já não era mais...
   Por isso, ao olhar para suas cartas e lembrar dos momentos vivenciados, dos sonhos compartilhados, dos sentimentos dilacerados, baixou sua mão e teve medo. Medo de arriscar tudo e passar novamente pelo melhor e pelo pior que a vida pode oferecer...
   - Eu estou fora... Não posso arriscar tudo de novo. - disse o Amor, quase sem forças.
   O Desejo e a Paixão ficaram um pouco surpresos com essa atitude, mas não fizeram muita questão de encorajar o amigo. A Razão sorriu e comentou que já esperava por isso, afinal, o Amor sempre foi um chorão que vivia a se lamentar dos fracassos da vida em seus ombros. Apenas o recém-chegado, que também parecia surpreso, dava mostras de querer incentivar o amigo. Aconselhava-o, lembrando-o de suas imensas qualidades, mas de nada adiantou, pois quando o medo de amar finca raízes no coração de uma pessoa este se fecha para sempre...
   - Mas e quanto a você? - indagou a Razão ao viajante, calculista como sempre. - Não vai dar o seu lance?
   Ele apenas sorriu, confiante, e acrescentou:
   - No momento não tenho muito a dizer, além de que é um grande prazer estar aqui com todos vocês! Há muito tempo não encontrava pessoas tão interessantes, que pra mim já soam como velhos amigos... Quanto ao jogo, podem ter certeza de que eu estou dentro. Como dizem, eu pago pra ver! Aposto tudo que tenho, além de minha amizade, é claro. Não é muito, mas pode ter um grande valor, se bem cultivada!
   - Muito bem, então. - começou a Razão. - Se todos concordam, vamos às cartas, amigos! O estilo de jogo é o poker aberto tradicional. Vamos seguir a ordem dos apostadores, ok?
  Todos compreenderam a explicação e começaram a ficar tensos, pois logo saberiam quem ganharia o raríssimo pedaço de coração. O Desejo se adiantou e baixou as cartas...
   - Tenho um par de Damas. Acho que ainda estou no jogo! - sorriu ele, apostando no blefe dos outros. Mas a Paixão deu uma larga risada de desdém e baixou as cartas sem pressa, enquanto debochava:
   - Aff! Realmente achou que poderia ganhar com isso aí...? Você sempre foi um grande blefador, um enrolão nato. Mas vou te mostrar o que EU tenho... Full House! Hahaha! Acho que vocês já eram, caros amigos. - e se adiantou para agarrar o prêmio, mas a Razão a interrompeu no ato.
   - Acho que você se enganou. EU ainda não baixei minhas cartas... - e dito isto, mostrou sua mão.
   - Quadra de setes. Pelo visto, meu jogo é mais alto que o seu. Mas é como eu digo: quatro cartas, quatro perdedores... sinto muito, senhores, mas eu não jogo para perder. - sentenciou ele.
   Ver aquilo tirou a Paixão do sério, e por pouco ela não perdeu a cabeça, mas o que fazer, só restava lamentar. Maldita Razão e sua precisão calculista! E pensar que poderia ter ganhado...
   Mas foi o Amor quem mais lamentou. Diante dele, jaziam as suas cartas, que agora, por desistência, eram inúteis. Eis o seu jogo: Quadra de noves. Poderia ter vencido a Razão, se tivesse confiado em si mesmo... mas já era tarde demais.
   Foi quando a Razão ia abocanhar o monte que o último jogador se adiantou e se preparou para mostrar suas cartas. A essa altura, todos tinham se esquecido dele. O que pensar? A Razão provavelmente já tinha ganho mesmo...
   - Eu ainda não mostrei minha mão. - disse ele, sorrindo. - Aqui está: Royal Straight Flush, naipe de copas. Acho que eu venci, né?
   Todos ficaram boquiabertos. Era simplesmente o jogo mais alto. Era quase impossível acreditar que aquele simpático estranho, que tinha sido amigável e solidário com todos, ganhara o precioso fragmento de coração, derrotando o Desejo, a Paixão, a Razão e o Amor numa épica partida de poker...
  - Mas quem diabos é você? - perguntaram todos quase ao mesmo tempo, impressionados com a façanha do viajante.
   - Eu? Pensei que já tinha sido apresentado a vocês há muito tempo! Meu nome é AMIZADE, muito prazer!
   Ele agradeceu a todos e levou consigo o pedacinho de coração que, com toda a certeza, ao seu lado encontraria a verdadeira felicidade.

FIM



(Leia também: Ensaio 1.1 - Poker entre amigos | Parte 1)
http://setor003.blogspot.com/2010/07/ensaio-11-poker-entre-amigos-em.html


Image: Poker by ~Kurobu on Deviantart


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