domingo, 22 de novembro de 2009

Ensaio 0.8 - Guloseimas





  - Você é um chato, um grosso, ignorante e idiota. - declarou ela, da forma mais gentil que pode encontrar, o que não necessariamente significa uma boa coisa. Parecia estar realmente estressada naquela noite, e para piorar toda a situação, havia sido provocada de uma forma revoltante. O estranho, aquele desgraçado petulante, tinha ousado roubar a sua deliciosa surpresa de uva!
  - Calma, guria. Muita calma nessa hora... -  e comeu o doce numa bocada só. - Por que você não toma um pouco de Coca-cola? Quem sabe assim você... - ia dizendo ele, oferecendo a latinha do precioso líquido, como quem sela a paz, mas foi bruscamente interrompido por um berro.
  - Mas essa coca era minha!!! É minha! E é lógico que EU vou bêbe-la, sozinha! Me dá isso aqui! - e tomou a latinha das mãos do coitado. Que violência! Ele sorriu, irônico.
  - Bem que me falaram que "nunca se deve fazer cócegas num dragão adormecido..." - murmurou, mas dissera a coisa errada.
  - O QUE FOI QUE VOCÊ DISSE?! TÁ DOIDO, É?!
  - ...
  Ela soltava fumaça pelas narinas, estava vermelha como se o sangue estivesse fervilhando, o olhar brutalmente assassino. O indivíduo percebeu o perigo eminente, e foi tratando de mudar logo o discurso, assumindo um tom condescendente:
  - Olha, guria, veja pelo lado bom. Ultimamente, você tem comido muitas besteiras e se continuar assim, vai acabar ficando, digamos, "fofinha"... assim, considere o que fiz como uma ajudinha...
  - PAF!
(...)

  A garota das guloseimas olhava através da janela. Observava o mundo. As pessoas, jovens, maduras, caretas, estilosas, descoladas, certinhas, puritanas, pervertidas, porra-loucas, intelectuais e bêbados, de todas as tribos, passavam lá embaixo. Era um amálgama de personalidades diversas e pensamentos distintos, definido simplesmente (tanto pelos estúpidos quanto pelos especialistas) como FACULDADE. Ela sorriu para si mesma. Tinha conseguido.
  O mesmo "chato" de antes se aproximou cautelosamente dela, que ainda observava o movimento lá fora, distraída. Ele se acomodou no suporte de braço da carteira, de modo que mesmo sentado pudesse ver através da janela. Ela notou a presença dele e deu um muxoxo de impaciência.
  - Lá vem...
  Ele sorriu, em resposta.
  - Sabe, se você olhar atentamente, ainda é possível ver a marca que a sua mão fez na minha cara... Não precisava ter ido tão longe.
  Ela deu uma risadinha maldosa, e depois sorriu. Ainda parecia um pouco assustadora.
  - Você mereceu. Bem feito!
  Talvez tivesse razão.
  - Tudo bem... me desculpe então. Aceite isso, como uma compensação pelos meus comentários... - e, retirando um bombom de chocolate do bolso, ofereceu a ela. Era um Sonho de Valsa.
  - Olha só, o grosso sendo gentil... que milagre.
  - É sério, foi mal.
  - É, foi mal meeeesmo. Mas eu não posso aceitar.
  - Por quê?
  - Não como chocolate. - Ela tinha um bom motivo para recusar. E quanto à promessa? Um Sonho de Valsa é tentador demais...
  - Pode aceitar, não está envenenado. Ou será que você levou a sério o que eu disse a respeito de "ficar fofinha"? Tá de regime agora, é?
  - Calado. Pare de falar que eu vou ficar gorda.
  - Tá bom...
  - Olha, é uma promessa, tá legal? Eu fiz uma promessa e alcancei a graça. Não vou comer chocolate nunca mais!
  - Sei... uma promessa, é?
  - É.
  - Tudo bem, se é importante pra você, pensarei em outra coisa.
  Ela já tinha ficado um pouco estressada, ponderou ele. Então, sem chocolates...
  - ...
  - Que foi? - perguntou ela.
  - É que faz sentido. Como não pode comer chocolate, exagera em todo o resto, não é? Hehehe!
  - PAF!
  - ...
(...)
  Outra noite. Hoje, ela aparenta estar um pouco mais amistosa. Tanto que ele achou seguro se aproximar.
  - Está de bom humor hoje, é?
  - É. - retrucou ela, rapidamente. - Mas não tão bom assim...
  Risos. A galera se aproximou. Todos conversavam sobre bobagens e riam facilmente. O clima era bastante agradável. Ele até chegou a poupar a surpresa de uva dela dessa vez...
  - Olha, eu vou te escrever um conto.
  - Hã?
  - É, um conto. Como não aceitou o chocolate, foi a única coisa na qual eu pensei. Não sou muito bom, mas vá lá. Você não fez nenhuma promessa quanto a isso, fez?
  - Não. - ela riu. - Tudo bem, aceitarei o conto. Vou cobrar, viu!
  - Tudo bem.
  Sabe, até que ele não era tão chato assim?
  - Hehehe. É estranho não ser esmurrado, estapeado ou esganado por você. Parabéns! Está deixando de ser aquela histérica, chata, ignorante, neurótica, estressada, enjoada, louca e assustadora...
  - PAF!
  (...)

  Uma manhã. Ela estava online, logada no Twitter. Ele também. Essa é mais uma daquelas coisas que acontecem no Twitter... O que você está fazendo?
  "Terminando o trabalho de economia. Agora só falta o fichamento do texto de filosofia..." - "twittou" ela.
  "@Guloseima Que fichamento é esse? Tou por fora! ^^" - "twittou" ele.
  "@Chato3 Devia prestar atenção na aula, pra variar! =P" - "twittou" ela em resposta.
  "@Guloseima Nossa, você realmente me ama." - "twittou" ele, em réplica.
  "@Chato3 kkkkkkkkkkkkkkkkkk Nem morta!" - "twittou" ela, e, tréplica.
  É, tem razão. Mas ela é bem interessante... Devia ser um pouco mais amigável. Mas e o fichamento? Que preguiça...
 
  Já ela, pensava na própria vida. Nas coisas que tinham acontecido até agora, tudo o que já vivenciara. Era estranho. Era algo que tinha ouvido há muito tempo: a vida é como uma peça de teatro. Por isso, cante, grite, chore, ame, dance e viva antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos. É como uma peça de teatro que não nos permite ensaios...
  Ela fechou os olhos. A vida se arrastava, dia após dia. Era preciso ser louco para se jogar de cabeça, sem medo de se esborrachar no chão. Feche os olhos, se jogue! É difícil. Ela pensou em Carpe Diem. Viva cada segundo como se fosse o último... Viva o hoje, sem pensar no amanhã. Cada momento era único.
 
  "Quando eu fecho os olhos, eu vejo a vida em slides." - "twittou" ela.
  Alguns minutos sem novos tweets. De repente:
  "@Guloseima Quando eu fecho os olhos, eu não vejo nada. Deve ser porque estou de olhos fechados..." - "twittou" ele.
  Apenas uma palavra surgiu na mente dela, murmurada naquele exato momento:
  - Ridículo.
(...)
  Naquele mesmo dia, à noite.
  - PAF!
  - Por que você me bateu? - indagou ele, massageando a costela.
  - Você é um ridículo.
(...)

  Mas uma noite, dias depois. Novamente, ela observava o mundo através da janela. O vai-e-vem das pessoas lá embaixo...
  - Lá no interior onde você mora, não tem TV não? - perguntou ele de longe, de surpresa. Ela fez mira e jogou a latinha de Coca-Cola com toda a força, mas errou. Ele se aproximou, agora cauteloso.
  - Fiquei sabendo que amanhã é seu aniversário. Te entrego o conto amanhã!
  - Como quiser. - ela voltou a observar os passantes, devorando um pacote de Rufles.
  - Nossa, você realmente gosta de se entupir com essas bobagens. Só nos últimos trinta minutos você comeu um pedaço de torta, uma surpresa de uva e tomou uma latinha de coca. Além da batatinha... O que mais me impressiona é que você não engorda nem um pouco. Pelo contrário, parece até que perdeu peso.
  - Quer apanhar, é? - ameaçou ela, estreitando os olhos. - Meu corpo é lindo, saudável e perfeito.
  - Sei... se você diz com tanta convicção...
  - CLING!
  - Você... grampeou meu dedo...
  - Devia era grampear sua língua!
  (...)
  O dia do aniversário. Ou melhor, a noite. Comemoração, cumprimentos, celebração. Abraços e sorrisos. Boas gargalhadas. Então, era hora de cantar "Parabéns para você" Não importa se inúmeros desconhecidos também estejam por perto...

  "Parabéns para você. Nesta data querida.
   Muitas felicidades, muitos anos de vida..."

  - Que mico... - ela deu um sorriso forçado, envergonhada.

"Haha! Huhu! Ô guria eu vou comer o seu bolo!
  Haha! Huhu! Ô guria eu vou comer o seu bolo!"

  Adivinha quem puxou essa? Ele mesmo...
  - O primeiro pedaço não é seu. - taxou ela, categoricamente.

(...)

  Hora dos presentes. Ele foi o último. Segurava umas folhas de papel datilografadas, e se aproximou confiante, esboçando um sorriso.
  - Eis o conto. Espero que goste.
  - Eu vou ler.  Mas se for mais uma palhaçada sua...
  - É a história da sua vida.
  - PAF!
  - Não precisava ter feito isso. Eu não quis dizer nada. Ah, é claro que não é a história da sua vida toda, é apenas um ensaio sobre nossas brigas e discussões. É cômico e divertido.
  Ela riu. Por essa ela não esperava...
  - Quer dizer que eu sou a personagem principal?
  - É.
  - Hum... você é mesmo um idiota. Por que escreveu sobre isso?
  - O porquê não importa... Saiba apenas que a vida é como uma peça de teatro que não nos permite ensaios. Antes que as cortinas se fechem, cante, grite, chore, ame e viva intensamente. Se jogue de cabeça, sem medo de cair. Feche os olhos e vivencie cada slide, como você mesma disse. Antes que a peça acabe sem aplausos... Mas se por acaso, isso acontecer, saiba que os meus aplausos você sempre terá.
  Ela ficou sem palavras. Não faz sentido. Por que ele se importa?
  - Por que escreveu o conto?
  - Porque eu tenho certeza que você é muito mais do que deixa transparecer. Achei que o conto poderia te mostrar isso...
  - Como assim?
  - Aquela pessoa rude e esquentada é apenas uma armadura que esconde a garota doce que ainda acredita no melhor da vida. Essa garota doce é você... tão doce quanto as guloseimas que come. É assim que eu te vejo.
  Ela o abraçou. Que milagre.
  - Obrigada. Como você consegue me aturar, hein?
  - Isso é um privilégio de poucos... - respondeu o escritor.
  Ela sorriu mais uma vez, e examinou as páginas datilografadas. Reparou no título.
  - Mais uma pergunta, seu ridículo e imprevisível... - e mostrou o título do conto.

GULOSEIMAS
  - Hum?
  - Esse título, por que você o escolheu? "Guloseimas"... Tinha que ter um tom irônico.
  - Eu pensei que se você consegue digerir todas aquelas porcarias, conseguiria digerir o que escrevi nesse conto, se ao menos tivesse um nome adocicado. Hehehe.
  - Paf!
  - Engraçado, esse tabefe não foi tão forte quanto eu esperava...
  - Você também não era tão idiota quanto eu esperava...
  - De qualquer forma, feliz aniversário!
  - Obrigada!

  E a festa teria continuado tranquila se não fosse pelo desastre da Fanta Uva, pela falta de Coca-Cola e pela falta de tato dele, ao fazer mais um comentário esdrúxulo...

**Dedico este à aniversariante, a doce garota por trás da armadura. Feliz aniversário, Arytãnia! 21/11/09**

(Next: Ensaio 0.9 - Indefinível)

- Imagem manipulada; - créditos:  Rena Yuki, in Deviantart; -


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