quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Ensaio 0.4 - Werneck


"Veja o que eu vejo."

"Se a felicidade tivesse forma, qual forma seria?
Acho que deve ser algo como o vidro
Por que você geralmente não a percebe,
mas definitivamente ela está lá.
Porém, cedo ou tarde você vai perceber
Porque se você olhar de um ângulo um pouco diferente,
O vidro reflete a luz.
E o que pode ser visto,
É a prova de uma grande existência, maior que qualquer coisa
."

(...)

    Havia uma pichação na parede da estação Werneck que sempre me chamou a atenção. A primeira vez que a vi foi há muitos anos atrás; naquela época eu mal sabia ler e não compreendi exatamente o que aquelas palavras queriam dizer. Hoje - infelizmente ou não - eu posso compreendê-las muito bem...
   O texto falava sobre o verdadeiro valor da felicidade. Estava escrito em tinta escarlate, bem chamativa e legível, mas as pessoas - ocupadas em seus interesses e afazeres - não reparavam na mensagem. Por algum motivo que desconheço (ou por motivo nenhum, não sei dizer), eu acabei olhando justamente naquela direção, na primeira vez em que estive no metrô. Estávamos indo visitar uns parentes, eu e minha mãe, e ao entrarmos na plataforma de embarque da estação, notei algo escrito na parede lateral, à esquerda do mapa da cidade do Recife. É claro que tentei ler a mensagem, mas não consegui entender o conteúdo do texto. Perguntei à minha mãe o que aquilo poderia significar, mas ela estava muito apressada e apenas murmurou algo do tipo "Não solte a minha mão...!", antes de me arrastar com firmeza para o interior do vagão. Lembro que fiquei por um bom tempo pensando naquela mensagem. Depois daquele dia, muitos anos se passariam até que eu fosse rever aquela parede e finalmente compreender as palavras pichadas em tinta escarlate...

***

   Hoje, revejo aquela mesma parede, mas as palavras foram apagadas. Em seu lugar, apenas a imensidão branca e vazia, onde só se é capaz de enxergar a lembrança de dias mais felizes... ou melhor, dias que hoje parecem ter sido mais felizes, agora que fazem parte do passado. Fecho os olhos, e imagino aquela noite, quando o milagre aconteceu. "Meu anjo...". Hoje, finalmente te encontrarei, pois às custas de muitas lágrimas e sofrimento eu consegui uma pista de onde poderás estar...
   Sigo adiante, me sento em um dos bancos encardidos da estação e espero, inquieto. Minutos depois, o expresso passa inabalável, sem dar a mínima para a minha impaciência. Xingo. Sem escolha, continuo esperando. Já passa das nove... É tarde, não tenho muito tempo. Hoje talvez seja minha última chance...
   Retiro uma pequena garrafa de wisky vagabundo de dentro do bolso esquerdo do paletó. Esta sim é a minha fiel companheira, a amante dos dias sombrios, a melhor ouvinte, guardiã dos temores e receios mais profundos. "Mas que diabos...? Está quase vazia..." Examino o rótulo por alguns instantes e bebo o que resta do líquido amarelado, sem remorso. Depois de mais alguns minutos, finalmente o trem chega. Apesar de vazia, guardo cuidadosamente a garrafa no bolso, e entro no vagão. 
    "Estação Werneck. Destino: Camaragibe" - anuncia uma voz feminina. Suspiro, indiferente, e me sento em frente à janela. "Werneck..." Engraçado, nem sei o que diabos isso significa. Seria alemão? Tem uma pinta de alemão...  Enfim,  não importa. Há coisas mais importantes em jogo hoje...
   Observo a plataforma de embarque pela janela, tentando encontrar alguém interessante entre as poucas pessoas que saíram dos vagões. É um dos meus passatempos inúteis. Próximo às escadas, um grupo de jovens faz uma grande algazarra. Uns idiotas quaisquer se achando... Gente desse tipo sempre aparece no metrô (e em muitos outros lugares, infelizmente). Os ignoro. Do outro lado, vejo uma quarentona e um garotinho seguindo de mãos dadas em direção à saída, provavelmente mãe e filho. Estranho, eles me lembram do dia em que vi a pixação escrita em escarlate pela primeira vez ...
   Os jovens se dispersam. Dois deles, ao invés de descerem as escadas, como os outros, decidem ir na direção contrária, caminhando cheios de si e encarando de forma suspeita a senhora e seu filho. Noto que eles parecem estar alterados e se comportando de modo estranho... 
   - Merda...! - exclamo, antevendo o perigo. Rapidamente, me levanto e cruzo as portas retráteis, que por segundos não se fecham antes que eu pudesse fazer qualquer coisa...
    Eles se aproximam cada vez mais. A senhora, desconfiando das intenções dos dois, fica aflita e apressa o passo, segurando com mais firmeza a mão do garoto de um lado e sua bolsa de couro do outro. Vendo a reação da mulher, um deles, então, contorna a passagem de acesso à rampa, correndo até a saída e lá se prostando de forma a barrar a passagem. Sem saber o que fazer, a mulher pára, assustada. Atrás dela, o outro melinate chega lentamente, sorrindo e sacando uma navalha do bolso lateral do jeans...
    - Passa a bolsa, tia! - anunciou o Candidato a Marginal N° 1, que estava bloqueando a passagem. - Vamo logo, ou nóis fura o pirralho! - acrescentou, revelando por sua vez um canivete suiço de aparência imunda. 
   Muito nervosa e mais pálida do que giz, a mulher tremia muito. Sua reação natural foi a de abraçar o garoto com força, na tentativa de protegê-lo. "Por favor, não o machuque...!", tentou dizer, quase sem voz, e depois disso não conseguiu mais falar, devido ao nervosismo. Mas não largou a bolsa, o que irritou o Candidato a Marginal Nº 1, que se adiantou e começou a xingar, canivete em punho.
   - Bora, porra! Passa a bolsa! Quer que eu te fure, é?
   Nesse momento, eu já estava próximo o bastante do Candidato a Marginal N° 2, que estava mais atrás e de costas para mim, sem ter como reagir... Antes que ele pudesse se dar conta, já estava caído no chão, segurando dolorosamente a "dobra" da perna direita. Aproveitando o golpe de sorte, apliquei um chute com toda a força na cabeça do delinquente, deixando-o sem sentidos. Foi bem mais fácil do que pensei, vai ver porque ele estava muito chapado, ou sei lá. Mais a frente, o Candidato a Marginal N° 1, percebendo o que tinha acontecido, empurra a mulher com brutalidade, que cai no chão. Ele então tenta dar uma de esperto e puxa o pirralho para o seu lado, de modo a fazê-lo um refém, ameaçando-o com o canivete.
   - Seu filho da puta! Olha o que você fez! - xingou ele alto, apontando pra mim, furioso. - Fica longe, se não eu furo esse merdinha! Juro que eu furo ele! - e posicionou a lâmina encardida contra a garganta do garoto, que tremia.
  - "Puta merda, o que eu faço?", pensei, desesperado. "A minha intenção era apenas ajudar, e agora aqui estou eu, piorando tudo. Porra!". Acima dele, o relógio da estação mostrava que eu não tinha mais tanto tempo... O último trem passaria a qualquer momento e eu teria de pegá-lo se ainda tivesse alguma esperança de reencontrá-la... Dessa vez um atraso seria fatal, e provavelmente jamais encontrarei outra pista. Era preciso escolher: abandonar os estranhos agora e ir até ela ou ficar e arriscar perder minha última chance de revê-la...
   "Preciso resolver isso logo. Eu consigo. Vai dar tudo certo..."
   Tirei a carteira do bolso e tentei negociar. 
   - Tome, aqui tem dinheiro, pode levar. Só deixe o garoto em paz, ok? Eu não vou mais reagir...
   - Cala a boca, seu puto! - berrou ele em resposta, visivelmente nervoso. - Joga essa porra pra cá! E a bolsa da dona também! Vamo, vamo logo!
   Fiz o que ele mandou, tentando me manter calmo. Depois de apanhar a carteira e vasculhar a bolsa, ele me olhou de um jeito malicioso e arrastou o garoto até a plataforma de embarque. Tentei seguí-lo, mas ele continuou me mandando ficar longe. No chão, sem conseguir se mexer, a mãe do garoto chorava, desesperada. Foi então que eu perebi o que ele ia fazer. Ele não pretendia deixar o garoto depois de tomar certa distância, ele ia...
   - Não faça isso! - e corri na direção deles para tentar impedir, mas era tarde demais. Ele tinha empurrado o garoto nos trilhos e corrido em direção à saída, logo depois. "Mas que filho da puta..." Continuei correndo, o som do  último trem se fazendo audível não muito longe dali...
   Pulei lá embaixo, sem pensar direito, o coração acelerado. O garoto estava meio tonto, mas conseguiu se levantar. Suspendi o guri e o instrui a tomar impulso e subir na plataforma, se agarrando nas bordas. Ele assentiu e fez como eu falei. Olhei para a esquerda. O trem já estava vindo. Engoli em seco e fiz um grande esforço para tomar impulso e subir a tempo...
   Felizmente, eu consegui, pois o trem reduziu a velocidade antes de parar na estação. Se tivesse sido o expresso... Ofegante, o coração ainda palpitando, observei o garoto tentando ajudar a mãe, mais adiante. Ela chorava e o abraçava... "Ainda bem que deu tudo certo..." 
   Atrás de mim, as portas retráteis se abriram. Sorri e me virei, para entrar no vagão, quando senti uma lâmina fria perfurar minhas costas uma, duas, três vezes. O Candidato a Marginal n° 2 - que nesse meio tempo tinha acordado - devolvera na mesma moeda meu ataque surpresa anterior. Senti um líquido quente escorrer pela lateral do corpo, e cambaleei, sem forças, caindo no chão. Aproveitando o golpe de sorte, o meliante aplicou um chute com toda a força em meu abdômen, fugindo logo depois. Com os olhos quase fechados, meio tonto e gemendo devido a intensidade da dor, olhei ao acaso para o interior do vagão.
   Lá estava ela. Estava sentada, pensativa, um livro apoiado no colo. O que ela estava fazendo aqui, nessa estação? Ela me olhou de volta, surpresa, nossos olhares se cruzaram. Na mesma hora senti o peso de sua essência, o peso de toda a sua alma. É assombroso, e ao mesmo tempo, maravilhoso. Seria mesmo ela? Não seria um delírio, um último desejo materializado pela força da minha vontade? 
   Ela se levantou e veio em minha direção, cruzando as portas um segundo antes de se fecharem. O último trem se fora. Agora ela estava em pé, na minha frente, e também parecia não acreditar no que estava vendo. Por alguma razão, ela não estava onde deveria estar, e eu não fui para onde deveria ir. Era ali, o tempo todo, onde deveríamos nos encontrar... provavelmente pela última vez.

* * *

   Maravilhado, o garoto não podia desviar os olhos daquela visão estonteante. Ela era... um anjo! Sua mãe o chamava, abraçando-o com força. "Rodrigo, Rodrigo, não está me ouvindo? Vamos, temos de ir logo, antes que aqueles marginais voltem!". Relutante, ele olhou para sua mãe, se perguntando como ela poderia estar preocupada com isso quando diante deles havia um ser tão assustadoramente belo? "Não está vendo, mamãe? Olhe, olhe pra ela! É um anjo, ela é um anjo!", e se virou para adimirá-la novamente. Ele poderia olhá-la por anos e anos, pela sua vida toda, e ainda assim não se cansaria de contemplar sua beleza. Faria tudo por ela, qualquer coisa, só para ficar com ela, só para tê-la eternamente ao seu lado...
(...)
   Dona Olga jamais poderia entender o que seu filho estava olhando com tanto afinco, muito menos o que ele quis dizer com aquele estranho comentário. Ela não podia enxergá-la - mesmo estando frente a frente com aquele ser encantador - simplesmente porque não queria enxergar. Aos seus olhos, seu filho apenas olhava o marginal caído e ensanguentado, que pela graças de Deus havia brigado com seus comparsas, dando a ela e ao pequeno a oportunidade de saírem dali o mais depressa possível. "Vamos, garoto, não teime comigo, eles ainda podem estar por perto!", e ignorando os esforços do menino em permanecer no local, o arrastou pelo braço até a saída, passando apressadamente pela parede branca onde outrora havia uma pichação escarlate... Aquela mesma pichação que falava sobre a verdadeira forma da felicidade...


Image: Heaven, by Penetre - on Deviantart



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