terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Ensaio 0.1 - Bonsai



  "Lembre-se."

  Pai e filha caminham tranquilamente pelas ruas do Bairro do Recife. Era uma bela manhã de novembro, um domingo que tinha tudo para se tornar um dia inesquecível. Os dois estavam alegres e cheios de expectativas. Era a primeira vez que a pequena Mariana visitava a famosa Feira Japonesa do Recife. Ela gostava muito de assistir aos desenhos animados japoneses (os populares animês) e também era uma leitora voraz de mangás, sendo a maioria presentes do pai, que era um aficcioando pela cultura nipônica em geral. Ansiosa, esperava finalmente conhecer de perto uma pequena fatia desse fantástico mundo e, o que é melhor, ao lado do seu pai, que raramente tinha a oportunidade de ver.
  Ela não sabia ao certo os motivos, mas seus pais infelizmente tinham se separado há alguns anos. Mariana e seu irmão mais velho continuaram morando com a mãe na antiga casa, enquanto o Pai se mudara para um pequeno apartamento no subúrbio.  No começo, ainda se viam com frequência, mas era muito chato e difícil ter de se revezar com um e com o outro, sem contar no grande desgaste emocional que ela sofria. Seus pais conversaram e acabaram concordando em espaçar as visitas ao apartamento. Foi duro, mas com o tempo ela acabou aceitando. Mesmo assim, frequentemente pedia a Deus que unisse o casal novamente, para que o Pai voltasse para casa, para que eles voltassem a ser uma família... Mas isso não aconteceu.
  Hoje era uma das raras ocasiões em que saiam juntos. Um dia conveniente para a agenda da Mãe, um dia planejado por tanto tempo pelo Pai... Passeavam de mãos dadas pela feira, reparando em cada detalhe; nas cores, nos sons, nas formas, nas pessoas. E por falar nas pessoas... tinha cada figura vestida de cosplay! Eles riram muito quando passaram uns marmanjões caracterizados de Sailor Moon (loucos ou corajosos?) zoando em meio a multidão. E lá adiante estava o Capitão Brasil batendo um papo descontraído com o Presidente Lula, sobre o futuro do nosso país. Sentados no chão mesmo, sem dar muita importância aos passantes, estavam Nara Shikamaru e o maior detetive do mundo, L, que travavam uma batalha épica no shougi. Logo adiante, jovens lolitas desfilavam pelo palco, impressionando a pequena Mariana, que se surpreendeu com a beleza das garotas e dos seus vestidos cor-de-roza, cheios de laços e babados. Encantada, perguntou ao pai:
  - Pai, elas não se incomodam com esse calorão? Tá me dando agonia só de olhar. Lá no Japão essa moda pode até pegar, mas aqui vai ser meio difícil, né?
  - Pois é. Mas lá no Japão essa moda já pegou. Faz parte da cultura deles, de certa forma...
  - Olha, olha! Vai começar outra apresentação!
  As garotas tinham se retirado do palco, dando lugar a uma alucinante apresentação de artes marciais. Os olhos de Mariana iam de um lado a outro, tentando acompanhar todos os movimentos, mas era quase impossível, devido a agilidade e técnica dos lutadores. Kung fu, aikidô, karatê, kendô... foi impressionante.
  Terminada a demonstração, surge o apresentador, todo animadinho e descontraído, pedindo a atenção do público. A tradicional cerimônia do sakê estava prestes a começar, anunciou ele, sendo rapidamente ovacionado pelos "pés-de-cana" presentes. A cerimônia do sakê consistia na quebra de dois grandes barris de carvalho, cujo conteúdo era o precioso líquido fermentado que servia de combustível para alegrar os ânimos e renovar as forças do pessoal. Percebendo que aquele já não era mais ambiente para garotinhas de dez anos de idade, o pai de Mariana sugeriu que eles fossem comer alguma coisa, afinal, ainda não tinham almoçado.
  - Mas e a cerimônia do sakê, Pai? Eu quero ver como é!
  - Vamos lá, Mari-chan, eu vou te ensinar a comer usando o hashi! Você não queria aprender a comer com os palitinhos?
  - Sério? Eba!!! Vamo, vamo! Eu quero comer lamén!
  O Pai sorriu e lá foram eles até a barraquinha de lamén. Ele não era lá um especialista na técnica milenar de se comer usando os palitinhos, mas mesmo assim, tentou ensinar o pouco que sabia, meio atrapalhado, a custa de muitas gargalhadas dos dois. Mariana pegou o jeito rápido, deixando-o abobado.
  - Esses jovens de hoje! Impressionante! Você é mesmo muito esperta, Mari-chan.
  - Que nada, papai! O senhor é que é meio bobo e não consegue fazer direito... deixa, eu te ensino!
  - Olha só... já tá querendo me ensinar, é? - observou ele, erguendo a sobrancelha.
  - Imagina...! - respondeu ela, piscando o olho. O Pai sorriu. Olhava-a com admiração. Era a sua única filha, um presente de Deus, e nem sempre podiam estar juntos... Ela o olhava de volta, sorrindo, como era linda. Tinha olhos brilhantes e enigmáticos, capazes de conquistar qualquer um. "Ela tem os mesmos olhos da mãe...", pensou ele, com o coração apertado pela saudade. Por que será que as coisas tinham acabado desse jeito?
  - Papai... está chorando? - reparou Mariana, aflita. - O que foi? O que foi, papai?
  - Não é nada... foi só um cisco que entrou no meu olho. - respondeu rapidamente, enxugando as lágrimas. - Vamos. Ah, acabei de ter uma idéia: deixe-me te comprar um presente, algo para você guardar de recordação e assim sempre se lembrar desse dia... Pode ser?
  - Claro! O que é?
  - Pode ser qualquer coisa. Escolha o que quiser. E então?
  - Ebaa!!! Tá certo, então!
  Saíram juntos, parando em cada uma das barraquinhas mais próximas, procurando algo que a agradasse, mas sem obter sucesso. Meia hora depois, já um pouco cansados, foram até a praça, afim de descansar uns minutos à sombra das árvores. Perto da fonte, eles logo repararam em várias tendas que chamavam bastante a atenção, expondo seus inúmeros bonsais. Mariana logo se aproximou, animada.
  - Olha, papai! Olha só, que lindo!
  O Pai também se aproximou, observando atentamente uma miniatura de cerejeira.
  - Realmente é muito bonito, além de ser bastante interessante. Eu sempre quis cultivar um bonsai quando era criança...
  Mariana estava bastante interessada num pequeno exemplar de romãzeira. Olhava-o de todos os ângulos, admirando a beleza dos frutos, o divertido tamanho singular, a composição do arranjo. Ela parecia ter achado o seu presente.
  - Papai, já sei o que eu quero. Eu quero um bonsai! Pode ser, pode, pode, pode?
  - Eu não sei... vai dar trabalho cuidar dele, minha filha. Existe toda uma técnica e...
  - Por favor, Pai! Deixa!
  - Hmm... veja bem, querida, é que eu queria te comprar um presente mais duradouro, pra você guardar de lembrança...
  - Mas Pai, eu achei tão lindo! Deixa, vai! Por favor!
  Ele refletiu por um instante e suspirou, antes de responder:
  - Tudo bem. Mas vai ter que cuidar dele, ouviu? Nada de dar trabalho para a sua Mãe.
  - Viva!!!

***

  O tempo passou rápido, pois ambos se divertiram muito. Enfim, tinha chegado a hora de ir pra casa. Apesar dos protestos de Mariana, o Pai insistiu que voltassem direto para a casa da Mãe, afinal, esse era o combinado.
  - Sua Mãe vai ficar preocupada, e com razão. Vamos, não fique assim... não precisa chorar. - pois os olhos dela já estavam cheios de lágrimas.
  - Não é justo! Ainda é cedo, papai... nós nunca fazemos nada juntos!
  - Ei, isso não é verdade. Olha, eu prometi a sua Mãe que iria levá-la direto para casa. Tente entender... eu gostaria muito de ficar mais tempo com você, mas infelizmente não dá.
  - Mas...!
  - Nada de "mas", garotinha. Já anoiteceu, está tarde e temos que ir. - encerrou ele, oferecendo a mão.
  Ela ainda resmungou algo como "Não é justo!", e segurou na mão dele. Os dois percorreram uma boa distância, até que ela recomeçou o assunto. Ignorando as reclamações da filha, o Pai a levou até a parada de ônibus. Lá, ele se agachou em frente a pequena, depositando o jarro do bonsai à sua direita, e falou bainxinho:
  - Filha, é muito difícil para mim ficar longe de você. Eu te amo, entenda isso, amo muito, muito, muito. - e beijou a face da garota. - Mas, eu combinei com a sua Mãe que te levaria para casa no mais tardar às 9 horas...
  - Mas ainda são 6 e meia!!! - bufou ela.
  - Eu sei, mas você sabe que vamos demorar para chegar lá. Vocês moram muito longe do centro da cidade. E você sabe que sua Mãe ficaria preocupada se nós demorassemos muito... sem falar que hoje é domingo, o ônibus demora muito a passar.
  - Eu sei...
  - Não fique chateada, filha. Outros dias como esse virão. Eu prometo que da próxima vez, ficaremos o final de semana inteiro juntos, que tal?
  - Tudo bem, Pai. Desculpe... mas é que eu sinto falta do senhor. É tão estranho não te ver mais em casa... não consigo me acostumar com isso. Sabe, às vezes eu choro muito, sinto saudades suas. Quando mamãe me vê assim, ela fica muito triste também. Às vezes, eu a vejo chorando escondido. Eu sei que ela ainda gosta de você, Pai! Eu só queria que vocês ficassem juntos de novo. Seria tão legal! Assim todos nós poderíamos ser felizes de novo!
  Aquele desabafo inocente foi como uma pontada no coração do Pai. Fazia tanto tempo, mas a filha ainda não tinha superado... é, talvez ela nunca superasse. Era realmente difícil. Nem mesmo a ex-mulher... e nem mesmo ele, tinham conseguido. A culpa era toda dele, de como ele tinha sido idiota e grosseiro. Se pudesse voltar no tempo...!
  - Mariana, preste bastante atenção: eu e a sua Mãe te amamos muito. Não deu certo entre nós dois, mas não queremos que você se sinta prejudicada. Se decidimos fazer dessa maneira, foi pelo seu bem! Sinto muito por tudo o que você está passando, mas apesar de separados, nós estamos do seu lado.
  - Eu só queria estar ao seu lado, Pai. Eu te amo. - disse ela, chorando. Emocionado, ele a abraçou forte, e murmurou:
  - Eu também te amo, filha.
  Alguns segundos se passaram. Mais calmo, o Pai chamou a atenção de Mariana e apontou para o céu.
  - Veja: consegue ver a estrela mais brilhante no céu?
  Mariana, os olhos ainda vermelhos e cheios d'água, demorou um pouco antes de responder:
  - Sim, é aquela ali. - e apontou.
  - Exatamente. O nome dela é Sofia. Todas as vezes que você sentir a minha falta, é só olhar para aquela estrela, a mais brilhante do céu. Eu também vou estar olhando para ela, e assim você saberá que não está sozinha. Eu jamais vou te abandonar! Eu sempre vou estar ao seu lado, não importa onde eu esteja. Porque eu sempre vou te levar aqui, no meu coração... - concluiu, a mão contra o lado esquerdo do peito.
  Ela olhou para ele, com toda a sua admiração, e sorriu. Seus olhos brilhavam como dois diamantes, iguaizinhos aos olhos da Mãe...
  - Obrigada, Pai.
   Ele a abraçou novamente, ainda mais apertado, enxugou os olhos da pequena, pegou o jarro ao seu lado e se levantou, rindo.
  - Muito bem, vamos lá: você conhece a piada do pinto que se chamava Relam?
  - Ah, Pai! O senhor já contou essa!
  - É mesmo? Hahaha! Só estava testando a sua memória!
  - Sei... eu creio.
  - É sério!
  - Papai, o senhor às vezes é tão bobo!
 
   Esperaram mais vinte minutos antes da chegada do ônibus, que pegaram sem maiores problemas. Mariana apoiou sua cabeça confortavelmente no ombro do Pai, e este passou o braço por suas costas, amparando-a. Seria uma longa viagem até a casa da Mãe, mas ao mesmo tempo, seria um momento único para os dois, um pequeno momento de felicidade onde estariam juntos.

***
 
**Dedicado a nossa pequenina estrela chamada Sofia. Sua curta passagem pela Terra não foi em vão! Nunca te esquecerei... nós sempre vamos te amar!**
 


(Next: Ensaio 0.2 - Distância)

Image: Plastic Bonsai - by ~ldinami7e - on Deviantart


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