terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Ensaio 0.2 - Distância



"Se eu fosse como a chuva..."

  Estou sentado em um grande rochedo, à beira do mar. Não me sinto bem. Ouço as ondas se chocando contra as pedras, num vai-e-vem sem fim. Suspiro. Sinto o cheiro característico da maresia. Isso me lembra a infância, aquelas férias  inesquecíveis na orla... Bons tempos. Sinto o sabor do vento em meu rosto e lembro vagamente do gosto da aventura. Ainda não me sinto bem.. Sinto o frio cortante desta primeira manhã de ano novo. Ignoro-o. Meus olhos fitam apenas o horizonte, inatingível. O sol não nasceu para mim hoje; vejo apenas as nuvens cinzentas de um triste céu nublado. Me sinto cada vez pior.
  Mesmo assim, continuo observando a linha imaginária, seduzido, encantado, imóvel. Sou como uma estátua sem propósito, uma pedra mal esculpida que tristemente volta-se para o além-mar. Vejo uma sombra; ouço um murmúrio abafado. E então, o silêncio. Por quê? Por que continuar olhando e olhando, sem esboçar reação? Por que buscar o inatingível? Por que iludir-me em um sonho inalcançável? Não teria sido melhor voltar minha humilde atenção para esta bela praia ao meu redor? Por que para o horizonte?
  - Não posso culpá-la... - sussurro, mais para mim do que para qualquer um. - Ambos desejamos o impossível, assim como todos os mortais sempre fizeram e o farão até o mundo deixar de ser mundo. As pessoas sempre desejarão o impossível, pensando assim estar em busca da felicidade. Enganam-se. Estarão apenas indo de encontro ao sofrimento, sem notarem a pretensão de seu erro. Elas estão acostumadas a esse fardo. Não, estão completamente presas a ele... tolas demais para perceberem o verdadeiro caminho. A felicidade está mais perto do que poderiam desejar; ela está nos pequenos instantes, em todos os momentos eternos e inesquecíveis.
...
  O vento sopra bem mais forte dessa vez. As ondas acompanham a mudança, chocando-se violentamente contra as pedras. Sinto um formigamento por todo o corpo, principalmente na parte inferior do mesmo. Estou sentado aqui há muito tempo... Minha cabeça dói, certamente devido ao peso dos meus pensamentos. Minhas costas começam a doer também, e por isso decido levantar. Faço isso sem pressa, e com alguma dificuldade. Fico de pé. A superfície da rocha, antes áspera, está agora úmida e escorregadia. Nem me dei conta de que a água tinha avançado até aquele ponto. A Natureza continua a sua dança, mesmo que para muitos ela já não tenha o mesmo significado. Eu sou um deles. Tentado, olho mais uma vez para o maldito horizonte. É hipnotizante. Uma grande dúvida surge em minha mente: o que há além? O que pode haver além do inatingível?
  - O paraíso... - me responde uma voz que julgo vir da minha própria consciência (ou teriam sido palavras balbuciadas pelo meu coração?). Por um instante angustiante, o tempo pára; ondas, vento, cores, nuvens, sombras, tudo. Seria verdade? Será esse o caminho que eu procurava?
   - Sim, o paraíso - ouso repetir - cujas portas estão fechadas para mim. Mesmo que fosse este o caminho, ainda assim não poderia percorrê-lo. Os pecadores estão condenados ao inferno da distância. Jamais cruzarão os portões do céu, ainda que sua vontade seja maior do que a própria felicidade. Do que a própria vida. Eu sou um pecador. Eu sou um condenado. Eu sou um infeliz, torturado pelos meus próprios sentimentos. Como poderia entrar na Terra Prometida aos Santos e aos Eleitos? Como poderia atravessar as fronteiras do inatingível? Tudo isso apenas para vê-la mais uma vez... Quando nem mesmo sei se valeria a pena. Quando nem mesmo tenho a certeza do que sinto... Ou até mesmo do que ela poderia sentir...
...
  Lembro de um sonho distante; da visão em tons de cinza; do medo de ter sonhado; do encontro com as estátuas; da procura incansável; das ponderações sobre o Amor; dos momentos ao lado dela; das lágrimas; do retorno ao onírico; da certeza de ter sido feliz... Lembro de todas essas coisas, e penso em desistir. Assim como tentaram me convecer os ídolos de pedra, no passado: "Desista!". É o que a Razão tenta me dizer, mas o som da palavra soa trêmulo e descrente aos meus ouvidos. Não me convenço. Estou perdido. Teria me restado apenas a loucura? A doce e amarga loucura...
  ...
  O anjo se foi. Eu cheguei tarde demais para encontrá-la; tarde demais para impedí-la. Droga, eu hesitei apenas por um breve momento, mas foi o suficiente para me arrepender amargamente. Eu já tive essa mesma sensação, muito tempo antes de testemunhar o milagre. Este mesmo arrependimento que despedaçaria a minha vontade e corromperia lentamente os meus pensamentos, me ocupando por tantas horas a fio... Meus olhos fitam o horizonte. É tarde demais para desejar o impossível. É tarde demais para mim.
...
  Não percebi, mas os ponteiros do tempo voltaram a correr. Parece que se passaram anos desde que cheguei ao grande rochedo. Mas elas ainda estão lá em cima, as mesmas nuvens cinzentas que agora se reúnem para formar uma grande e assustadora tempestade. "Logo vai começar a chover", penso. Suspiro mais uma vez. "Mas já não está chovendo?". Tento sorrir, como quem conforta a si mesmo. Em vão. Mas a  ironia não para por aí. Lembro que há dois dias atrás, recebi uma mensagem escrita por uma doce poetisa:

"De repente, num instante fugaz,
os fogos de artifício anunciam
que o ano novo está presente
e o ano velho ficou para trás."
"Se chovesse felicidade,
eu lhe desejaria uma tempestade.
Feliz Ano Novo!" 
 
  Sorrio. Parece que foi há muito tempo... Belas palavras. Porém, arrisco dizer que essa tempestade eminente nada tem a ver com os votos de outrora. É uma pena. Era tudo o que eu precisava...
  Sinto os primeiros pingos que caem. A chuva, enfim. É engraçado como velhos poemas podem vir a sua mente em determinados momentos. Lembro de versos antigos que não foram escritos pela poetisa, mas sim declamados por outra pessoa, há anos e anos. Era uma triste garota que lamentava-se, assim como eu, pelo inferno da distância:

"Se eu fosse como a chuva
Que faz um elo entre a Terra e o Céu
Que jamais irão se encontrar
Será que eu poderia atar dois corações?"

  - Se eu fosse como a chuva... - murmurei, hesitante - será que os portões do Paraíso se abririam para mim?

  Uma lágrima solitária cai timidamente. Eu não vou desistir. Daquela vez, mesmo contra todas as adversidades, eu consegui encontrá-la. Eu vou achar um caminho que cruze os céus, um caminho que eu possa percorrer.  Chegarei aos portões da Terra dos Eleitos. E entrarei, sem dúvida. Mesmo que eu tenha  de procurar pelos quatro cantos do mundo em busca das chaves do Édem. Questionarei sábios e loucos; desafiarei santos e céticos. Buscarei o grande segredo com todas as minhas forças, e se for da vontade Dele, eu o desvendarei. Mas se ainda assim, ninguém souber a resposta, eu farei meu próprio caminho.
  - Embora eu não possa voltar atrás e começar de novo, eu posso começar agora e fazer um novo fim. - proclamo as palavras do lema, sem nenhuma dúvida. - Pois o poder de acreditar em si mesmo é o poder de mudar o Destino. É o poder de evocar um milagre...
  E dito isto, dei as costas para o horizonte, e parti.

**Dedicado a todos aqueles que ousaram acreditar - apesar dos obstáculos, medos e incertezas - e continuaram tentando, sem jamais chegar a desistir.**

(Next: Ensaio 0.3 - Paraíso)

Image Credits: The storm by *Floriandra - on Deviantart


3 comentários:

  1. Eu adorei a sua postagem, seu blog é show.
    Bjão!

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  2. Força, coragem, persistência e determinação, entre outras palavras, é o que temos de ter para VIVER essa vida num mundo que a cada dia se torna mais difícil.

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  3. Obrigado! Fico feliz que tenha gostado. ^^
    Realmente, precisamos de muita garra para continuar vivendo nesse mundo tão confuso, mas não devemos jamais esquecer do prazer do simples ato de viver, pois sem isso, do que valeria a pena, não é mesmo?
    Beijos pra ti.

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